Na última aula foram propostos dois exercícios. No primeiro teríamos que usar o que o professor chama de "contraste", ou seja, criar uma atmosfera a partir da descrição do cenário para, ao longo do texto, mostrar os personagens com sentimentos opostos ao que o ambiente sugeria, numa tentativa de surpreender o leitor. Já no segundo exercício, a tarefa era criar uma narrativa apenas a partir do cenário, sem o uso de personagens, fazer o leitor descobrir, conforme lê, os fatos que aconteceram ou vão acontecer naquele ambiente. Por conta disso, de serem dois exercícios, saíram dois textos mais curtos que os anteriores, entretanto isso não quer dizer que o esforço tenha sido menor. Pelo contrário... Sendo assim, seguem os textos:
Texto 3 - O cemitério
Por ser o
primeiro cemitério construído na cidade, o Jardim de Caronte abrigava os restos
mortais das famílias mais tradicionais, as tidas como fundadoras da vila que
originou o município de Nova Atenas e, por isso, possuía mausoléus imensos,
tumbas maiores que os barracos dos moradores da favela Beira Rio. Túmulos em
mármore, imagens religiosas em tamanho natural, até mesmo uma cripta sob a
igreja, onde estava enterrado o primeiro padre a celebrar uma missa na então
Vila de Atenas, tudo isso compunha o visual do local. Entretanto, ao longo dos
anos, as novas gerações das tais famílias tradicionais foram abandonando essa
prática peculiar de ostentar as suas posses em um cemitério e, por
consequência, os outrora imponentes jazigos se transformaram em construções
decrépitas, muitas delas tomadas pelo mato, por ervas daninhas, raízes de
árvores fazendo seu caminho por sob as sepulturas, derrubando um azulejo aqui,
outro ali, pinturas há muito sem renovação, emprestando ao Jardim de Caronte
uma atmosfera ainda mais lúgubre, tétrica, macabra. Era como se todas, ou pelo
menos a maioria das famílias que possuíam algum antepassado ali enterrado,
tivessem decidido ao mesmo tempo não mais dedicar tempo e dinheiro à manutenção
dos túmulos.
Foi nesse
ambiente que, numa tarde abafada de uma quinta-feira de setembro, Augusto,
Laércio e Rui se reencontravam, conforme haviam combinado há alguns meses.
Estavam ali para visitar a última morada de Francisco, o amigo que haviam
perdido para um infarto fulminante; naquele dia, se vivo estivesse, ele
completaria cinquenta anos.
- Aqui
Chicão. Conforme a gente tinha combinado, as cervejas. – Rui colocava sobre a
lápide uma caixa térmica cheia de latinhas e gelo.
- A gente
bem que preferia um boteco, mas você resolveu levar a sério aquele papo de
morrer jovem... – disse Laércio, já puxando o anel metálico, fazendo o barulho
característico.
- Pois é.
Se eu não conhecesse esse tratante desde os meus quinze anos poderia dizer que
morreu só para não ter que pagar a conta hoje. – completou Augusto, repetindo o
gesto de Laércio e propondo um brinde.
- Saúde! –
propôs Laércio.
- Eu acho
que você deveria ter dito isso para o Chicão alguns meses atrás... HAHAHA! –
gargalhou Rui, seguido pelos dois amigos.
- Cara –
prosseguiu Laércio – se alguém me dissesse que um dia eu estaria em um
cemitério, bebendo cerveja em cima do túmulo de um amigo meu, era bem capaz de
eu me zangar e até partir para ignorância. No entanto, cá estamos nós.
- Isso é
verdade, mas vocês lembram bem como o Chico encarava esse lance de morte. –
disse Augusto, antes de sorver outro gole generoso. – Ele vivia dizendo que
iria morrer cedo, que tinha pavor de ficar na mesma situação do pai dele. Eu
nunca o julguei por causa disso, embora pense diferente...
- Mas sabe
que eu não só o entendia como passei a pensar da mesma forma? – revelou
Laércio, recebendo os olhares arregalados dos amigos.
“É
verdade. Eu acho que a gente tem que querer viver enquanto é possível
justamente isso, viver. Não que eu queira morrer cedo, desde que eu chegue aos
cem anos lúcido, independente. Claro que terei muitas limitações próprias da
idade, mas que seja possível eu me sentir vivo. Não acho que seja válido uma
existência que não seja vida, mas apenas uma prolongação de dor e sofrimento”.
- A gente
viu de perto o que o Chicão passou com o pai dele. Não dá para culpá-lo por
pensar como pensava. – contemporizou Rui. – Se querem saber, não viemos aqui
para questionar as falas e convicções do nosso amigo. Viemos para cumprir o que
prometemos uns aos outros, de estarmos todos juntos quando um de nós completar
cinquenta anos. E mesmo não sendo essa a situação ideal, tampouco o local
apropriado – nunca havia notado como esse lugar é macabro, Jesus! – não estou
triste. Se Chicão está nos vendo agora, deve estar até com os olhos marejados,
aquele manteiga derretida.
- É Rui,
você tem razão. – concordou Augusto. – Se um dia nos tornamos amigos foi por
nos aceitarmos como somos, sempre respeitando a forma de cada um pensar. Também
concordo que o local é o último onde eu achei que um dia fosse tomar uma
cerveja, mas se foi assim que as coisas se apresentaram, pois que assim seja.
Mais uma latinha?
Texto 4 - A sala de jantar
Era uma
sala de jantar grande, espaçosa, de um tamanho difícil de encontrar nas
construções atuais. Ainda era possível notar que o teto era branco, embora a
fuligem tivesse tomado quase toda sua superfície. Nas paredes, os resquícios do
papel que outrora as cobriam denunciavam uma preferência pelo dono da casa por
tons pasteis, o que causava um contraste ainda maior com o negrume deixado pelo
fogo. Não era preciso ser um especialista para notar que o fogo se alastrou da
lareira situada ao fundo da sala, no lado oposto ao da porta de acesso, a qual
possuía duas folhas, das quais só restavam as dobradiças chamuscadas. Era
visível o rastro negro vindo do local que antes abrigava a borralha, porém era
difícil precisar o que serviu de combustível para o inflamável alcançar o resto
do ambiente.
A
imponente mesa de jantar, juntamente com as doze cadeiras que a acompanhavam,
cinco em cada lateral e mais duas em cada ponta, talvez por ser construída com
a chamada “madeira de lei”, não estava tão destruída como alguém pudesse
imaginar, dada a força das chamas que consumiram aquele ambiente. Já o encosto
e assento estofados haviam se tornado uma mera lembrança, provavelmente
registrada em algum retrato perdido no tempo e em algum canto daquela mansão.
O cheiro
de queimado era forte, assim como o calor naquele cômodo, ainda que o chão, as
paredes e os poucos móveis e objetos que resistiram, total ou parcialmente, ao
fogo estivessem encharcados. Havia água, inclusive, pingando do teto, numa
amostra da difícil, porém vitoriosa, batalha travada contra as chamas.
No piso,
além da fuligem, a água se misturava a cacos de vidro que um dia protegiam o
mostrador e o pêndulo do relógio carrilhão que ornamentava a lateral da sala,
bem ao lado da porta de serviço que dava acesso à cozinha, a qual, quando ainda
existia, era usada quase que exclusivamente pela criadagem. Era provável que os
estilhaços de copos, pratos, jarros e outros recipientes também estivessem em
meio aquele lodo, mas agora era possível apenas imaginar.
Embora
apenas testemunhas pudessem acontecer o que de fato acontecera ali, um
observador mais atento poderia fazer algumas deduções, graças a alguns objetos
encontrados, os quais definitivamente não faziam parte da decoração daquela
sala de jantar tão imponente. Coincidência ou não, mas um pé de sapato de salto
que conseguiu se safar do fogo e mantinha sua cor vermelha, uma armação de
óculos com hastes bem finas, cujas lentes provavelmente haviam se misturado aos
cacos do carrilhão, um pedaço que lembrava couro e por certo um dia serviu como
capa para um livro considerado sagrado para um determinado grupo de pessoas, se
encontravam, todos esses objetos, próximos à porta principal do cômodo, como
que abandonados sem que seus possuidores se preocupassem em tê-los de volta.
Finalmente,
defronte à lareira, como que ocupando o lugar na ponta da mesa, de forma que
seu ocupante tivesse em seu campo de visão a porta que um dia possuía duas
folhas e, ao mesmo tempo, pudesse apenas ouvir o crepitar das chamas ardendo às
suas costas, estava a estrutura metálica, o que também se poderia chamar de
carcaça de uma cadeira de rodas.