domingo, 6 de novembro de 2016

Jornada do Herói

     A maioria das estórias que lemos ou assistimos tratam-se da chamada 'jornada do herói'. Tratam-se de etapas pelas quais a narrativa tem que passar para construir o personagem principal, seu antagonista e os coadjuvantes. Foi o exercício mais difícil, pois tomou muito tempo, muita revisão. Óbvio que a jornada é muito mais do que eu posto aqui. Como disse, é apenas um exercício. Mas com base nesse esqueleto dá para desenvolver a estória para onde o autor quiser. Serve como roteiro, estrutura, fio condutor. Deu trabalho, mas finalmente saiu...

ETAPAS DA JORNADA DO HERÓI

1 – O mundo comum
- Vem comer, menino. Já, já você precisa abrir a taverna e atender aqueles beberrões, não pode ficar sem comer. Come, vamos!

Como filho único, Reno sempre foi muito protegido pela mãe, e também muito mimado, especialmente depois que seu pai morreu. Por conta disso, era sempre o gordinho da turma, sempre acima do peso, já que sua mãe nunca achava que ele havia comido o suficiente.

Quando chegou à idade de prestar serviços à guarda do reino, Reno não foi convocado para o alojamento e para os treinamentos, por conta de seu peso em excesso. Foi um dos poucos jovens que não passaram pela cavalaria real, o único por obesidade – os demais possuíam alguma deficiência motora, visual ou mental. Por conta disso acabou assumindo a administração da taverna que era de seu pai quando este morreu. Graças às iguarias preparadas pela Dona Zaira, sua mãe, a Taverna do Zenon – nome do seu falecido pai – era um dos locais mais frequentados do reino.

Embora sofresse limitações por conta do seu peso, Reno não fazia questão alguma de emagrecer, especialmente depois de ter perdido a oportunidade de servir à guarda real e realizar o sonho de seu falecido pai. A única coisa que importava, agora, era seguir administrando a taverna e comendo as delícias que sua mãe preparava na cozinha.

2 – Convite à aventura
            Começou a correr pelas vielas que o rei havia decidido trazer de volta a Pedra do Pecado, confinada por anos no interior da Torre Seca, no Grande Deserto do Leste, pois há anos não havia nenhum nascimento no reino e isso começava a preocupar os conselheiros, os quais previam dificuldades no futuro. A sociedade estava envelhecendo, o número de pessoas precisando de cuidados estava aumentando e, em breve, seria maior do que a quantidade de pessoas que podiam prestar tais cuidados.

            O que era apenas um rumor logo se confirmou, o rei havia mesmo decidido sobre o retorno da Pedra, e Reno soube disso diretamente da boca de Mestre Borin, cavaleiro do reino, comandante da guarda real e que no passado havia sido muito amigo de seu pai. Como o caminho até a Torre Seca era inóspito, sem qualquer tipo de fonte de alimento, apenas alguém como Reno poderia suportar a jornada sem comer, uma vez que não morreria de inanição. Além disso, Mestre Borin sabia que escolhido teria condições de cumprir com a missão, ainda que o próprio Reno não soubesse disso.

3 – Recusa ao chamado e a motivação
            Reno se desesperou ao saber da convocação do rei. Passar dias sem comida, rumo ao lugar mais temido do reino, era algo que considerava impossível. Sabia que não teria forças para concluir a missão e, pior, como suportar a ausência das comidas de sua mãe sem enlouquecer?

            Mestre Borin disse a Reno que ele não teria outra opção, pois eram ordens do rei. O mestre revelou a Reno que tinha conhecimento de que o taverneiro treinava às escondidas com a espada que havia sido de seu pai, segredo que Reno julgava ser apenas seu. A mãe de Reno, acreditava que a espada havia sido entregue à guarda real após a morte de seu marido, pois assim o exigiu quando recebeu a notícia de que havia ficado viúva. Não gostava da arma, a julgava amaldiçoada, acreditava que seu marido havia morrido justamente por ter mantido em seu poder objeto que não mais o pertencia, uma vez que não conseguiu fazer parte da guarda real.

            Quando Zenon morreu em circunstâncias que nunca foram totalmente esclarecidas, o então garoto conseguiu preservar a espada que seu pai guardava. Zenon não havia se perdoado pelo fato de não ter conseguido conquistar seu lugar na guarda real quando jovem. Suas habilidades motoras eram sofríveis, não era capaz de manejar a espada ou qualquer outra arma. Assim que foi dispensado, conseguiu que Borin – já comandante da guarda real naquela época – o deixasse ficar com a espada que estava na família havia gerações. Segundo as tradições, quando um jovem fracassava na tentativa de fazer parte da guarda real, quaisquer armas que possuísse, mesmo que de família, eram confiscadas e passavam a fazer parte do arsenal do reino. Porém, em nome da amizade que Borin manteve por toda a vida com os antepassados de Zenon, especialmente com o próprio, o comandante permitiu que o futuro pai de Reno mantivesse a relíquia familiar.

           Após a morte de Zenon, Borin fez que atenderia ao pedido de Zaira, mas secretamente entregou a espada a Reno, pois sabia da admiração do garoto pelo pai, porém acreditava que ela jamais seria usada, pois o filho de Zenon nunca entraria para a guarda por conta de seu peso. Mestre Borin ficou surpreso com a tenacidade do garoto ao descobrir que ele treinava secretamente suas habilidades com a espada.

     Finalmente havia chegado a hora de Reno colocar em prática tais habilidades.

4 – Encontro com o mentor
            Mestre Borin explicou a Reno que, anos atrás, a então rainha, incomodada com o que ela chamava de “as indecências do reino”, determinou que o conselho de sábios eliminasse toda a luxúria presente nas pessoas, pois não suportava mais a vida mundana que seus súditos – e também a realeza – levavam.
            
            Foi quando o conselho conseguiu reprimir toda a lascívia existente no império, enclausurando todo esse desejo no que eles vieram a chamar de Pedra do Pecado, um cristal ordinário, sem valor, mas que após ser encantado, tornou-se brilhante, de cor escarlate. O desejo da rainha era ver essa pedra destruída, para que nunca mais houvesse malícia nas pessoas, mas seu desejo não foi atendido, uma vez que caso destruída a pedra toda a luxúria tornaria a habitar as pessoas, pois o desejo carnal jamais pode ser destruído, apenas reprimido. Sendo assim, a solução encontrada foi isolar a pedra considerada maldita num local distante e conhecido apenas por pelos membros do conselho.
            
             Além de explicar a origem da Pedra do Pecado e indicar a Reno o caminho que deveria seguir para recuperar tal objeto, Mestre Borin entregou ao mais novo servo da realeza um cajado mágico com o qual ele poderia obter água de qualquer ponto do solo, pois água era algo que Reno não poderia obter apenas com a gordura do seu corpo. Além de água, o cajado também serviria como fonte de luz, pois uma vez dentro da torre, Reno perderia o auxílio da luz natural. Ao questionar seu mestre como deveria fazer para que o cajado iluminasse seu caminho, Reno ouviu que não deveria pensar nisso, pois o artefato reconheceria a escuridão e naturalmente iria se iluminar, pois como já havia sido apresentado, era um cajado mágico.

5 – Travessia do portal
            A partida de Reno em direção ao Deserto do Leste foi acompanhada por todo o reino, dos súditos à realeza. Navegaria por quase um dia inteiro até alcançar o outro lado do oceano que separava o continente habitável do temido Grande Deserto do Leste. Sua mãe estava inconsolável, chorava e dizia que se o filho morresse naquela jornada o reino nunca mais teria paz, pois amaldiçoaria a todos. Ante o desespero da mãe, Reno resolveu esconder a espada no meio dos mantimentos e colocar a bainha nas costas apenas quando chegasse ao outro lado da travessia.
            
              Reno não se empolgou com o tamanho da embarcação, pois sabia que os mantimentos que ali cabiam jamais seriam suficientes para saciar sua fome, tampouco teria condições de carregá-los durante sua jornada solitária. Decidiu que não dormiria durante o percurso, pois passaria o tempo todo comendo. Não queria ter que jogar nada fora e imaginava que quanto mais alimentado estivesse assim que alcançasse o outro lado, mais tempo suportaria sem comida.

6 – Desafios do herói
            Uma vez desembarcado, Reno logo se pôs a percorrer o caminho indicado por Mestre Borin, pois não queria perder tempo, muito menos energia. Reno acreditava que não corria risco de se perder, pois mesmo ao longe, a Torre Seca já era visível. Ao redor a paisagem era uma só: uma planície vermelha, árida, sem qualquer vestígio de vegetação, tampouco de outros seres vivos. O céu, praticamente sem nuvens.
           
           Seguindo as orientações de Mestre Borin, Reno saiu do reino na intenção de alcançar o Grande Deserto na manhã do dia seguinte, pois ainda que o calor fosse extenuante, uma caminhada noturna seria ainda mais perigosa por conta da queda brusca de temperatura que certamente ocorreria naquele ambiente. Assim, Reno caminhava resignado sob o forte sol sobre sua cabeça, carregando apenas o cajado mágico na mão direita e a espada embainhada nas costas.

Finalmente, depois de uma longa e extenuante caminhada, Reno alcançou a entrada da Torre Seca. O servo real pensou que mais do que o calor, foi a solidão do trajeto que tornou tudo ainda mais penoso. Acostumado ao barulho constante dos bêbados em sua taverna, estar tanto tempo sem ouvir nada além de seus pensamentos foi uma dificuldade para a qual ele não estava preparado. Reno evitava pensar que ainda havia muito a percorrer sem qualquer companhia. Felizmente o cajado de Mestre Borin era muito eficiente e fazia brotar água pura e fresca mesmo do solo mais árido; por várias vezes Reno fez a água jorrar para o alto, para depois cair sobre sua cabeça e aplacar o calor.

Ao contrário do que pensava, a entrada da torre não estava bloqueada; assemelhava-se mais a uma caverna do que a algo construído pelo homem, tanto que por um momento pensou que o nome correto do lugar deveria ser “caverna seca”.

Assim que cruzou a entrada e finalmente se viu livre dos raios solares, ouviu o barulho de água corrente, o que lhe causou ainda mais confusão, pois acreditava que estava indo para um lugar seco. Anotou mentalmente para, quando retornasse, questionar seu mestre o porquê do nome “Torre Seca”. Reno frustrou-se ao perceber que não alcançaria o riacho logo abaixo, pois seu corpo obeso não o permitiria atravessar a fenda que se apresentava na rocha à sua frente; teria que percorrer outro caminho, provavelmente mais longo. Ainda que o cajado lhe fornecesse água, imaginou que o riacho seria um bom guia para o interior da torre.
          
          A fome já se fazia sentir mais forte. Reno pensou em desistir, mas preferiu crer que perto do riacho haveria algum tipo de vegetação ou mesmo ser vivo que servisse de alimento. De repente, perdeu os sentidos. Quando deu por si, estava ajoelhado, com uma rocha nas mãos, entre os dentes. Foi então que percebeu que a ausência de comida o fazia alucinar. Confundiu pedra por pão. Temeu por sua sanidade e por sua vida.

7 – Aproximação da caverna oculta
            Reno já não sabia mais a quanto tempo estava no interior daquele lugar. O cajado mágico e sua incrível habilidade de perceber a escuridão e emitir luz havia se tornado também um incômodo. Como o ambiente era escuro o tempo todo, a luz do cajado nunca se apagava e Reno não tinha mais noção de tempo, não sabia se era dia ou noite, só conseguia dormir quando absolutamente esgotado. O que denunciava que já estava ali há mais tempo do que gostaria eram suas roupas, já largas, o cordão da cintura cada vez mais apertado para segurar suas calças. Agradeceu estar carregando apenas a espada, que era feita de material leve, pois não sabia se teria forças para carregar qualquer outro objeto, inclusive comida, sobre os ombros.

Reno percebeu que havia chegado a algum lugar, que aquela caminhada que parecia interminável finalmente encontrava seu fim. Acompanhando o fluxo de água desde que alcançou o riacho, ele notou quando a velocidade da água diminuíra, assim como quando o solo perdeu sua inclinação aos poucos. Depois de percorrer corredores longos e estreitos, Reno chegou a uma gruta enorme, a uma profundidade que ele desconhecia. O riacho que parecia terminar ali, despejava suas águas numa espécie de lago, com uma rocha perfeitamente retangular em seu centro. Sobre ela, uma pedra igualmente retangular, não maior que um pedaço de sabão, emanava um brilho vermelho, intenso, como se fosse o coração pulsante de um ser mitológico.

Foi então que Reno se deu conta de que havia alcançado o santuário da Pedra do Pecado.
           
8 – Encontro com o vilão e desfecho (9)
Reno não teve dificuldade para alcançar a pedra, pois a quantidade de água que circundava o seu pedestal era insuficiente para alcançar seus tornozelos. Porém, antes que pudesse pôr as mãos naquela gema brilhante, ouviu um ruído, como se algo se movesse sobre as águas.

Foi então que Reno percebeu que a hora de usar suas habilidades com a espada finalmente havia chegado – até ali não havia enfrentado nenhuma criatura, apenas a fome e o cansaço. Uma serpente monstruosa guardava o ídolo. Por um momento chegou a achar que era uma nova alucinação, pois se perguntou como uma criatura daquele porte poderia sobreviver num local sem alimento. Porém não teve tempo de descobrir.

Embora assustado e severamente debilitado, Reno foi capaz de perceber que o monstro era cego, guiava-se provavelmente pelos sons e variações de temperatura e deslocamento do ar. Mesmo em franca desvantagem, dadas suas condições físicas, Reno conseguiu derrotar a serpente, após desferir vários golpes com sua espada, até que o monstro sucumbisse. Surpreendeu-se com a facilidade com que abateu o monstro, especialmente por estar há tanto tempo sem comer. Pensou que, talvez, o monstro estivesse nas mesmas condições, igualmente ou ainda mais debilitado, além de ser uma criatura cega. Se não fosse o cadáver que jazia à sua frente, iria pensar que havia alucinado, mais uma vez.

10 – Caminho de volta
            Embora a tentação fosse quase dolorosa, Reno resistiu ao ímpeto de morder nacos de carne da serpente. Teve medo de ser envenenado e fracassar, logo agora que havia conseguido o mais difícil. Resignado, foi até a Pedra. Ao retirá-lo de sua base, nada aconteceu, para a surpresa de Reno.
            
           Quando ele se deu conta do caminho que teria que fazer para retornar ao reino, sentiu-se sem forças para continuar. Foi então que resolveu banhar-se nas águas do riacho, na tentativa de recarregar o pouco da energia que ainda lhe restava. Desequilibrou-se ao entrar na água e derrubou a pedra no leito do riacho, a qual ficou totalmente submersa. Reno não se desesperou, pois a correnteza ali era quase nula, porém percebeu uma agitação repentina nas águas que circundavam o que até minutos atrás servia como altar para a Pedra do Pecado. O local onde a pedra mágica estava começou a ruir, aos poucos, até que uma cratera se abriu e Reno teve tempo apenas de guardar a pedra na bolsa vazia que trazia amarrada em sua cintura, não conseguiu fugir para o lado oposto. O chão tremeu sob seus pés e ele foi tragado pela correnteza e pela gravidade rumo ao desconhecido.
            
           Reno achou por um momento que iria despencar em direção ao centro do planeta, mas logo percebeu que a água o conduzia por uma galeria, por passagens que pareciam há muito esculpidas pelas águas, algo que se assemelhava a um enorme e antigo sistema de escoamento. Por alguns segundo chegou a se divertir com a experiência, mas logo percebeu que a velocidade com que descia só fazia aumentar, que a força dos impactos do seu corpo ao alcançar as curvas dos corredores por onde deslizava era cada vez mais forte. Foi então que perdeu o controle sobre o corpo e sentiu uma pancada na cabeça. Desmaiou.

11 – A ressurreição
          Reno acordou com dores por todo o corpo, sentindo o calor do sol no seu rosto. Quando conseguiu restabelecer seu raciocínio, tateou em busca do ídolo e sentiu-se aliviado ao perceber que o mesmo não havia se perdido na enxurrada. Quando percebeu uma sombra sobre o rosto, olhou para cima e viu Mestre Borin à sua frente.
            
            O mestre explicou a Reno que apenas o portador do cajado mágico poderia adentrar a torre; qualquer outra pessoa que ali chegasse não enxergaria a entrada, apenas rocha, por isso a missão dele tinha que ser solitária. O ancião disse a Reno que o ponto onde se encontravam era do lado oposto da entrada da Torre Seca, e que, dali, ambos poderiam retornar ao reino através de um portal secreto. Antes que Reno protestasse, Borin explicou que seria inútil ele chegasse por ali através do portal, pois o acesso à gruta da Pedra do Pecado era inacessível por aquele ponto. Era impossível subir até o altar da pedra por aquelas galerias íngremes e escorregadias.

12 – Clímax
            Reno foi recebido com honras de herói, sendo aplaudido por todo o reino. Porém, em meio à multidão, buscou por sua mãe. Amparada pela rainha, ela chorava ao ver o quanto o filho havia emagrecido, seu aspecto de sofrimento, sofria ao imaginar as privações pelas quais ele havia passado. Tentando conter a emoção e o desespero, Zaira pediu desculpas por ter pedido ao Mestre Borin que a espada de Zenon fosse devolvida ao reino, mas que agora estava feliz por não ter sido ouvida pelo comandante da guarda real. Mostrou-se orgulhosa da coragem do filho e sentiu que seu falecido marido estava sendo honrado. Reno compreendeu a mãe e, com um abraço, demonstrou a ela que nada mais importava, pois havia cumprido a missão e, mais importante, finalmente poderia comer da sua comida de novo.

13 – Finalização
            Ao notar a aproximação do rei e da rainha, Reno se ajoelhou em reverência e entregou ao casal a Pedra do Pecado. Era incrível como, mesmo depois de tantas quedas, o objeto permanecia intacto, sem nenhum arranhão, como se fosse o mais puro diamante vermelho do universo. Em seguida, a rainha, com um sinal sutil de cabeça, ordenou que o Conselho dos Sábios a seguisse, pois teria início o ritual de libertação da luxúria e, dali alguns meses, recomeçaria o repovoamento do reino.

          Embora todos quisessem se aproximar de Reno, o agora herói pediu a seu mestre que dispersasse a multidão. Não queria, naquele momento, nenhum tipo de festa, celebração. Desejava apenas voltar para sua casa, com sua mãe, poder finalmente descansar num local confortável e, mais ainda, comer tudo aquilo que conseguisse. No fundo Reno sabia que as forças que reuniu para concluir a missão não eram fruto de heroísmo, muito menos de um desejo de ter de volta a luxúria – na verdade ele nem sabia bem o que queria dizer luxúria, pois fazia parte da geração que havia nascido depois da criação da Pedra do Pecado – mas sim resultado da fome, da vontade de estar de volta à sua casa, à sua mesa, do desejo quase doloroso de comer as comidas que apenas sua mãe sabia preparar. 
                Reno jamais revelaria, mas seu heroísmo na verdade era fome.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Texto 9

          Esse exercício consistia em descrever a evolução de determinada fase da vida de um personagem usando apenas frases curtas. A intenção é fazer com que o leitor perceba essa mudança na fala do personagem, sem qualquer outro recurso de narrativa.


Eu resolvi esperar.

Não gosto de balada.

Quero namorar antes.

Eu não bebo.

Onde é esse clube?

Gosto só de cerveja.

Estou aqui a passeio.

É open bar?

É a minha primeira vez.

Com vodca fica bom.

Estou arrependido.

Quero fazer de novo.

Não uso aplicativo.

Oi, quer teclar?

Não tenho local.

Não pago para fazer isso.

Tenho local.

Não tenho fetiches.

Só fumo careta.

Quanto é o programa?

Couro me dá alergia.

Não curto casais.

Essa aqui é da boa, purinha.

Somos só nós três?

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Texto 8 - Canibais

Nesse o exercício consistia numa situação banal e um diálogo incomum.

(Restaurante refinado, percebe-se pela decoração, pelas roupas dos clientes – apenas adultos, alguns idosos - pelos uniformes dos garçons e pela quantidade de copos e talheres nas mesas, que se trata de um local frequentado por pessoas de alto poder aquisitivo. Ao fundo, quase imperceptível, o som de um violino preenche o ambiente, trazendo ainda mais requinte ao jantar. Assim que Abigail e Aníbal entram no restaurante, atraem todos os olhares. Ela, impecável num vestido vermelho, cabelos presos em coque, uma estola sobre os ombros, e ele igualmente elegante num terno feito sob medida, o cabelo meticulosamente penteado e os dentes impecavelmente brancos. Sentam-se numa mesa no centro do salão, um de frente para o outro. A hostess se oferece para guardar a estola de Abigail enquanto o garçom entrega os cardápios e a carta de vinhos. Aníbal dispensa os papeis com um simples gesto da mão. O garçom se retira, com ar confuso).

ABIGAIL – Você deve mesmo ser muito bem relacionado. Trazer o seu próprio jantar para ser servido aqui. Os pratos daqui são famosíssimos, tem até lista de espera, mas você os despreza para servir os seus.

ANÍBAL – Primeira correção: não são meus, são nossos. Aliás, seus, afinal você os preparou. Segunda correção: não estou desprezando a comida daqui, apenas prefiro a sua, nessa ocasião. É um jantar especial, não acha?

ABIGAIL, sorrindo de forma sedutora: - Especial? É, pode ser. Afinal é o nosso primeiro jantar depois que você me deixou agir sozinha; mais importante ainda, o primeiro jantar que eu preparo para você.

ANÍBAL – Justamente. Por isso não poderia servi-lo na sua ou na minha cozinha.

ABIGAIL – Mas sua cozinha é impecável!

ANÍBAL – Obrigado, mas lá não teríamos o que temos ao redor. Essas pessoas que aqui estão irão para as suas casas depois do jantar sem imaginar o que foi servido para nós. Se soubessem, provavelmente surtariam.

ABIGAIL – Vendo por esse lado, realmente vai ser algo bem especial.
(Um garçom se aproxima e serve vinho para ambos)

ABIGAIL – Esse é de sua adega, presumo.

ANÍBAL – Sim, claro. Meu amigo Frank, o dono do restaurante, ficou mais ofendido por eu ter trazido o vinho do que a comida – sorri – mas como disse, é uma noite especial.

ABIGAIL, levantando a taça – Brindemos, então. Saúde!

ANÍBAL – Saúde!
(Ambos bebem um gole, degustando. Abigail abre os olhos numa expressão de prazer)

ABIGAIL – Meu Deus, Aníbal! Se eu soubesse que iria beber um vinho desse, teria me apressado em preparar esse jantar!

ANÍBAL – De forma alguma, tudo ao seu tempo. Eu espero, inclusive, que a comida faça jus ao meu vinho.

ABIGAIL perde o sorriso e deixa a taça sobre a mesa: - Por favor, você não deve esperar pratos tão saborosos quanto os que você prepara, Aníbal. Eu preciso que seja compreensivo. Foi a minha primeira vez sozinha. Creio que fui uma boa aluna, mas só com a prática se chega à perfeição.

ANÍBAL, deixando a taça sobre a mesa e tocando a mão de Abigail com a ponta dos seus dedos: - A perfeição não existe, por isso nós, os perfeccionistas, nunca a atingimos. Vou levar em consideração que é a sua primeira vez. Mas me conte sobre os ingredientes, antes de pedirmos para que nos sirvam. Quantos foram?

ABIGAIL – Dois. Embora apenas um seja suficiente para a maioria dos pratos que você me sugeriu, eu escolhi como principal logo aquele que usa baço. Aí apenas um não seria suficiente, eu precisava de dois.

ANÍBAL – Entendo. Imagino que tenha guardado o que não usou de forma correta, não?
ABIGAIL – Sim, claro. Eu sabia que muita coisa iria sobrar, especialmente os intestinos. Se eu precisar de uma nota de recuperação, tenho certeza que o acondicionamento dos excessos vai me fazer passar de ano.

ANÍBAL – Não tenha medo, não vou reprová-la, apenas umas aulas de reforço, se julgar necessário – Aníbal pisca para Abigail. Mas me conte mais. Como foi o abate?

ABIGAIL – Sabe o que nivela todas as pessoas? O ego. Basta você se insinuar, demonstrar que está atraída, com tesão, que ninguém resiste. Todo mundo quer se sentir desejado. Não foi diferente com Tomas e Tarsila.

ANÍBAL – Irmãos?

ABIGAIL – Não, apenas coincidência. Tomas foi fácil. Homens. Bastou uma volta no Vila Dionísio e pronto. Menos de duas horas depois lá estava ele me seguindo. Foi tão simples que nem teve tanta graça. Sorte a dele que nem teve tempo de ver a faca se aproximando. Acho que por isso, também, não usei quase nada além do baço. Foi muito fácil para usá-lo no menu de hoje. O freezer ficou quase todo cheio só com Tomas.

ANÍBAL – E você guardou tudo?

ABIGAL – Sim, guardei. Ainda que você não goste do que preparei, eu vou ter que jantar e almoçar outras vezes.

ANÍBAL – Depois falamos sobre isso. Aliás, eu preciso ir até sua casa e ver em que condições você o armazenou. Eu sei que lhe ensinei à exaustão, mas nunca com dois corpos de uma vez. E ao menos que tenha preparado comida para toda a clientela desse restaurante, hoje, você também não usou Tarsila por completa. Usou?

ABIGAIL – Não, não usei. Só que enquanto eu consegui Tomas anteontem, Tarsila eu consegui dois dias antes dele.

ANÍBAL – E você precisou almoçar e jantar de lá para cá...

ABIGAIL – Exato.

ANÍBAL – Gostaria que você tivesse me dito isso antes, que tinha a intenção de usar dois de uma vez só. Você conseguiu Tarsila faz quatro dias. Muito tempo para um baço ficar congelado.

ABIGAIL – Poxa, mas você sempre congela tudo, tem uma câmara fria enorme!

ANÍBAL – Sim, tenho, mas nem todas partes podem ficar congeladas por muito tempo. Quero dizer, podem, não apodrecem, mas isso altera o sabor, a consistência deixa de ser a ideal. Nunca lhe expliquei isso pois realmente não imaginei que pegaria dois de uma só vez. Subestimei você. Mas você disse que conseguiu ambos pelo desejo, pelo tesão. Como foi com Tarsila? Você é bissexual?

ABIGAIL – Claro que não. Eu nunca tive a intenção de foder com ela, Tomas eu confesso que até considerei, mas isso não me impediu de flertar com a moça. Tarsila eu encontrei numa sala de bate papo. É incrível como essas pessoas ainda se escondem nas sombras, coitadas. Enfim, conversamos, trocamos Skype, a convidei para o sítio, ela topou. Doida. Devia estar desesperada para aceitar ir para o meio do mato assim, com uma estranha.

ANÍBAL – Mas você é encantadora. Você mesma disse que basta mostrar interesse nas pessoas que elas sucumbem. Linda assim, qualquer um vai para o meio do mato com você.

ABIGAIL – Obrigada. Sempre um galanteador. Só que ela me deu mais trabalho. Não bebe – ou melhor, não bebia. Esse povo todo natureba, vegano, essas coisas. E isso foi falha minha, pois eu deveria ter perguntado antes. Sem beber ficou difícil eu dominá-la.

ANÍBAL – E como conseguiu?

ABIGAIL – Bom, como você disse que estressar a pessoa antes da morte pode por tudo a perder, por conta das substâncias que o corpo libera nesses momentos de medo e pavor, tive que apelar para o bom e velho atiçador de lareira. É, eu sei, faz sujeira e o cérebro fica comprometido para consumo, dependendo da força que se aplica. Só que eu não aguentava mais aquela baboseira de natureza, animaizinhos, Greenpeace. Uni o útil ao agradável e acabei logo com o meu martírio. Fiz que ia ao banheiro e ela nem viu a pancada.

ANÍBAL – Estou começando a achar que liberei você cedo demais. Falha minha. Eu tinha que ter antevisto essas coisas. Foquei em lhe ensinar como retirar, preparar e preservar os órgãos e me esqueci que antes disso tudo teria que se ocupar dos corpos.

ABIGAIL – Então façamos assim. Hoje você avalia meu talento como colhedora, armazenadora e cozinheira. Depois começamos um novo módulo e você me ensina como ser uma boa caçadora e abatedora. Que tal? – Abigail levanta a taça, propondo um brinde.

ANÍBAL, levanta a taça, respondendo ao brinde: - Combinado, que assim seja. Pedimos para que o garçom nos sirva, então?


ABIGAIL – Por favor! Certamente seu amigo Frank já teve tempo o suficiente para preparar todos os pratos. Só espero que ele tenha seguido minhas instruções corretamente. Vamos comer! Mais do que estar com fome eu estou curiosa para saber a sua opinião.

sábado, 22 de outubro de 2016

Texto 7

O exercício consistia em criar uma cena onde o diálogo fosse banal e a situação inusitada, incomum, surpreendente.

(Sala de um necrotério, as paredes da direita e do centro tomadas por gavetas refrigeradas onde ficam os corpos; na da esquerda a porta de acesso, duas pias, um armário tipo fichário, e outro maior, utilizado para guardar os pertences pessoais das funcionárias e demais objetos. No meio da sala, duas mesas metálicas que são utilizadas para a preparação dos corpos, antes de serem levados ao velório. Duas mulheres na sala. Jurema, a mais velha, mais de cinquenta anos, está em pé ao lado de uma das mesas, preparando um corpo, passando uma esponja sobre o mesmo, como quando se banha uma pessoa acamada – a outra mesa está vazia – enquanto Paloma, jovem de vinte e seis anos, perambula pela sala, levando e trazendo utensílios usados por Jurema. Como numa cirurgia, a média e a assistente).

JUREMA, com a voz um pouco abafada por causa da máscara frente à boca: - Ela está grávida, eu tenho certeza!

PALOMA – Mas só porque ela engordou?

JUREMA – Ah, mulher sabe dessas coisas, ainda mais sendo minha filha! Gislaine tá ganhando peito, bunda, muito rápido! Tenho certeza que a danada fez besteira. Me ajuda aqui, segura essa perna.

PALOMA, colocando a máscara sobre a boca e segurando a perna direita do morto, quase num ângulo de noventa graus: - E o que ela disse quando você perguntou para ela? Negou?

JUREMA – Pior que eu ainda não perguntei...

PALOMA – Como não? Ai se eu desconfio que uma filha minha de quinze anos aprontou uma dessas eu não deixaria quieto...

JUREMA – Que filha, garota? Você não tem idade para ser mãe da Gislaine, não.

PALOMA – Você entendeu o que eu quis dizer, né Jurema? Posso baixar a perna?

JUREMA – Pode. Agora levanta a outra. O problema é que eu não sei como puxar esse assunto com ela sem o pai dela perceber. Se for mesmo verdade eu não quero nem ver o que o Gilberto vai fazer com essa menina...

PALOMA, segurando a perna esquerda na mesma posição da outra:
- Só que se for mesmo gravidez, não vai demorar muito tempo para ele perceber também né?

JUREMA para de passar a esponja e apoia as duas mãos na mesa, cabeça baixa:
- É, eu sei. Ai menina, estou num mato sem cachorro. E para ajudar tenho esse emprego com esses horários malucos. Isso era hora de uma mãe de família estar trabalhando? Desce a perna.

PALOMA, repousando a perna cuidadosamente sobre a mesa:
- Por isso eu acho que vou ficar para tia. Que homem vai querer namorar uma mulher que mexe com defunto, de madrugada? Passando a mão em gente pelada?

JUREMA, indo em direção à pia, retirando as luvas e a máscara da boca:
- Que jeito de falar, menina! “Passando a mão em gente pelada”. Quem ouve vai pensar que em vez de um necrotério isso aqui é a zona.

PALOMA, igualmente tirando as luvas e a máscara:
- Ai, tá bom, desculpe. Esqueço que você é toda séria.

JUREMA, sem se virar, ainda com a atenção na pia, lavando objetos:
- Não é uma questão de ser séria, mas de se dar ao respeito.

PALOMA – Ok, já entendi. Mas estamos só nós duas aqui, vai. E não deixa de ser verdade o que eu disse. Se bem que, no caso desse presunto aí, eu preferiria era passar a mão nele ainda vivo. Baita homem desse. Que desperdício...

JUREMA se vira bruscamente e levanta a voz: - Olha o respeito, menina! Que coisa mais horrível, falar assim de um falecido. Ele pode estar morto, mas certamente existem pessoas que estão sofrendo pela perda dele. Se não consegue respeitar o finado, ao menos tenha respeito pela família dele!

PALOMA – Nossa, Jurema. Que exagero. Já disse, só estamos nós duas aqui. Essa bronca eu mereceria se dissesse isso na frente de algum desses familiares, amigos, sei lá. Como você conseguiu ficar tantos anos nesse emprego, se importando tanto assim? Você leva para casa o sofrimento alheio, de pessoas que você nem sabe quem são?

JUREMA, abrindo o armário e retirando de dentro dele um terno, uma camisa, uma gravata, uma cueca, um par de meias e um par de sapatos, colocando-os na mesa vazia:
 – Eu não levo nada para casa, apenas acho desnecessário e desrespeitoso esse comportamento. Ainda que ele tenha sido um bandido, uma pessoa horrível em vida, não tenha família ou amigos para chorar a sua morte. Agora é entre ele e Deus. Nosso papel aqui e tratar o corpo dele com respeito e dar a ele um fim digno, independente do que ou quem ele tenha sido antes de chegar aqui. Se você quer manter esse emprego, melhor repensar suas atitudes e, principalmente, suas palavras.

PALOMA - Tudo bem, embora não concorde com você, pois eu acho que depois que morre o ser humano vira apenas matéria orgânica, comida de verme, ou do fogo que seja, me policiarei para não fazer mais comentários como esses perto de você. Já com relação ao emprego, agora eu preciso dele, mas garanto que não quero passar o resto da minha vida aqui.

JUREMA, desdobrando cuidadosamente as peças de roupa – Pois que assim seja. Enquanto eu for a responsável aqui, prefiro mesmo que se comporte da forma que eu acho correta. Quando eu não estiver mais aqui, ou quando você ganhar as contas, faça como quiser. Pouco me importa. Agora, coloque suas luvas e me ajude aqui.

PALOMA – Cueca? Para que cueca no corpo, se ele vai estar vestido?


JUREMA, colocando a máscara sobre a boca: - Não faça perguntas, apenas faça o que eu peço, sim?

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Texto 6

Esse texto saiu de um exercício de "texto dramático", onde não há a presença do narrador, apenas diálogos.

- Sente-se.

- Nossa, que séria.

- Pois é, a conversa vai ser séria mesmo. E eu vou ser direta. Eu sei por que você está fazendo tanta questão de reunir as duas famílias no natal, esse ano.

- Você fala de um jeito que parece até crime. Qual o problema em finalmente reunir nossas famílias na mesma festa?

- Ué, de repente teve amnésia? Já faz seis anos que nós alternamos as festas pois nem a sua, nem a minha família quer passar a noite de natal como convidados. Meus pais gostam de reunir os filhos e os netos na casa deles. Fazem muito de não implicarem comigo quando eu passo com a sua família, que não quer passar com a minha pelo mesmo motivo. Ah, Leonardo, sério mesmo que eu preciso explicar isso? Não, né? Que coisa.

- Sim, claro que eu sei, mas não custa tentar reunir todo mundo, eu acho. Vai ser a vida inteira assim? Ou lá ou cá? Mesmo quando a gente se casar? E quando vierem nossos filhos, vamos fazer como, cortar ao meio e dar metade para cada avó? Já sei, vamos torcer para virem gêmeos, assim a gente deixa um em cada casa. “Que coisa” digo eu, agora.

- Era justamente sobre isso que eu queria falar. Como eu disse, eu sei o porquê de você querer tanto essa festa com as duas famílias. Você vai me pedir em casamento durante a ceia, não vai?

- O quê?

- Não adianta, Leo. Larissa me contou tudo.

- Aquela vaca, linguaruda!

- Não fale assim da sua irmã. Não seja ridículo. Ela fez foi muito bem em me contar. Claro que ela pediu para que eu não a entregasse, prevendo essa sua reação patética, mas eu contei e você nem invente de pegar no pé dela. O problema agora é só entre nós.

- Problema, Bianca? Eu pedir você em casamento é um problema?

- Sim, dessa forma é.

- Que forma?

- Ou você é muito cínico ou muito egocêntrico.

- Ei! Que agressividade é essa?

- Ah, Leonardo, por favor! Você acha mesmo que não há problema algum em me colocar numa situação dessa? Aliás... Estou começando a achar que teve essa ideia justamente para me colocar numa posição difícil diante da minha e da sua família.

- Do que você está falando? Ficou maluca?

- Estou falando de você ter pensado em me pedir em casamento justo na noite de natal, com ambas famílias reunidas, pais, mães, irmãos, sobrinhos, todos, só para me colocar numa saia justa e eu me sentir coagida a aceitar. Claro! Imagino a avozinha toda comovida com você de joelhos me pedindo em casamento e eu recusando! Certamente eu ficaria como a bruxa da história. Você fez de caso pensado. Seu tratante.

- Meu Deus, Bianca! Que raiva toda é essa? E, espere um pouco, você recusaria? Ou melhor, vai recusar?

- Claro que sim!

- Mas por quê?! Não entendo! A gente se ama, estamos juntos há mais de cinco anos, nunca tivemos problema algum, sempre foi um namoro gostoso, inclusive nossos amigos sempre dizem que queriam ter uma relação sólida como a nossa! E agora vem você com essa. Assim, do nada!

- Não é do nada, não. Acontece que você alimenta essa ideia de casamento desde sei lá quando, talvez antes mesmo de me conhecer. Alguma vez você me perguntou o que eu pensava sobre isso?

- E precisava perguntar? Realmente, você nunca falou sobre casamento, mas também nunca se mostrou contra! E agora que eu também terminei a faculdade, é o próximo passo. Não?

- Aí é que está. Não é.

- Ah não?!

- Leo, me ouve. Tenho para mim que você alimenta essa vontade desde que se entendeu por homem, que percebeu o que é um relacionamento entre um casal. Provavelmente pela trajetória dos seus pais e até mesmo dos seus irmãos, você sempre quis o mesmo. Na sua cabeça existe uma ordem natural das coisas. Perde a virgindade. Formatura. Viagem para Porto Seguro. Faculdade. Cursa o que os pais escolheram ou segue a carreira do pai – o seu caso. Namora. Formatura. Assume o negócio da família. Noivado. Casa. Carro. Casamento. Gravidez. Enxoval em Miami. Filho. Casa na praia. Outro filho. Disney. Carro maior. Talvez um terceiro bebê. Comprar moto gigante para dar a volta no quarteirão no fim de semana. Talvez uma variação aqui ou ali, mas basicamente é esse o roteiro que você considera como o ideal para se sentir e, mais importante, se mostrar bem-sucedido para a sociedade. E aí, eu como a namorada, sou inserida nesse contexto, sem ao menos ser questionada. Você presumiu que eu tinha a mesma visão e pronto.

- Credo, Bianca. Eu acho que você deu uma exagerada. Eu pensei em fazer dessa forma por achar que iria ser romântico. Ok, você tem razão, eu nunca perguntei a você. Se bem que se perguntasse antes toda a magia do momento iria se perder.

- Pois então. Esse é o problema. Se tivesse perguntado, iria saber que eu não sou contra o casamento. Entretanto, eu acho que uma decisão dessa importância deve ser tomada em conjunto, não imposta. Tudo bem, existem pessoas por aí que matariam por uma situação como essa, serem pedidas em casamento como num conto de fadas. Só que eu nunca fui uma dessas pessoas. Aliás muito me espanta você não ter percebido isso.

- Pelo visto eu conheço menos você do que eu imaginava. Parece até outra pessoa. Engraçado que até então você nunca havia mostrado essa sua repulsa com relação ao romantismo.

- Você entendeu muito bem o que eu quis dizer, mas é claro que iria se portar dessa forma. Vai distorcer tudo o que eu disse e eu vou ficar como a vilã da história. Eu jamais fui contra o romantismo. Nosso namoro funcionou até aqui pois, mesmo eu sabendo desses seus planos de casamento, família, você nunca me pressionou. E eu gosto de você. O problema aqui é um só. É você ter decidido que o momento de ficarmos noivos é agora, sem saber o que eu penso, o que eu quero. É uma atitude egoísta e até mesmo ardilosa, me colocando numa sinuca de bico diante de todo mundo. Ainda bem que a Larissa se colocou no meu lugar e me avisou.

- E viva o Clube da Luluzinha!

- Ah, Leonardo, não seja cretino, por favor. Na verdade, a sua irmã fez um favor a você também. Sim, pois você estava tão certo de que eu iria aceitar seu pedido que nem cogitou como seria se eu dissesse não. Não foi? No constrangimento que seria para você, também, ter seu pedido recusado na frente de todos. Já imaginou a cara do seu pai? Pois então. Você tem mais é que agradecer à sua irmã.

- Tá, Bianca. E agora, como vai ser?

- Bom, embora você não tenha perguntado, assim como você eu também sempre tive meus planos pós formatura. Porém, eles são bem diferentes dos seus.

- E eu posso saber sobre eles? Aliás, você se formou há seis meses. Por que até agora não ouvi nada a respeito? Taí mais um motivo para achar que você queria a mesma coisa que eu.

- Eu não disse nada antes pois eu queria mesmo esperar até a sua formatura. Eu sabia que se dissesse algo antes você poderia até mesmo ter dificuldade em terminar sua monografia. Sei bem o quão difícil é o último semestre.

- Nossa. Que mistério. Confesso que estou ficando assustado com esses seus tais planos. Nem sei mais se quero saber quais são.

- Não há nada de assustador neles. Desde o segundo semestre eu comecei a juntar o dinheiro que seria para a formatura para poder usá-lo agora, depois de formada.

- Como assim? E a sua festa de formatura, quem pagou?

- Meu pai. Por mim eu nem participaria, no máximo como convidada de um dos meus amigos da sala. Só que quando eu disse ao meu pai ele fez questão de bancar, pois ele queria a festa. Única filha, valsa, colação de grau, roupas de gala, enfim, você conhece o velho.

- Então você aceitou o dinheiro dele. Quem diria.

- Acabei de explicar. Ele queria a festa. Foi mais por ele do que por mim. E qual o problema? Sim, eu sempre fiz o possível para me manter sem precisar dele e justamente por isso tive que escolher não participar da formatura, se quisesse ter dinheiro para o que pretendo fazer agora. Ele se ofereceu, eu aceitei. E fiz muito bem, pois a festa foi maravilhosa. Bom, você viu né, afinal estava lá.

- Tá, tá. Mas afinal, o que tanto você pretende fazer? Ainda não me disse.

- Eu pretendo, quero dizer, eu vou fazer uma viagem pelo Brasil. Especialmente pelo Nordeste. Se bem que com a grana que eu guardei, eu vou conseguir conhecer outras regiões e quem sabe até algum país vizinho. Quero ficar pelo menos uns três meses na estrada.

- Mas viajar, agora? Vai ser difícil para mim. Papai está doido para passar a empresa para eu comandar, não via a hora da minha formatura para se aposentar. Se eu disser a ele que vou fazer uma viagem, ainda mais de três meses, acho que ele surta. E outra coisa. Nordeste? Com esse dinheiro dá para conhecer vários países da Europa.

- Pronto. Lá vem. Além de todos os clichês, mais esse. Por que só Europa presta e seu próprio país não? Por que esse tom de desprezo quando disse “Nordeste”?

- Ah Bianca, não vai querer dizer agora que a Europa é feia e não vale a viagem?

- Eu jamais disse e jamais direi isso. Eu sonho em conhecer muitos lugares da Europa. E irei conhece-los. O que me incomoda é esse pensamento de que viajar pelo próprio país “não dá status”, por isso não vale nada. E antes de viajar para o exterior eu acho no mínimo mais sensato viajar pelo meu próprio país. Não me vejo indo para, sei lá, Grécia sem antes ter conhecido as praias nordestinas. O Brasil é tão vasto, tão diverso, com tantos atrativos, que não dá para não querer conhecer tudo. Mas... agora me dei conta. Como assim “vai ser difícil” para você? Acha que vamos juntos?

- Ué, não vamos? Como assim?! Você pensou em viajar sem mim? Com quem você vai viajar? Só falta me dizer que com a Larissa!

- Não, não é com ela. Nem com você. Eu vou sozinha.

- Sozinha?

- É, sozinha. Mesmo antes de saber dessa maluquice de pedido de casamento eu já havia decidido. Eu vou viajar sozinha.

- Mas Bianca, meu Deus! Então além de recusar meu pedido de casamento, vai terminar nosso namoro?! Então por que ficou comigo esse tempo todo? Fui um idiota útil?

- Não é nada disso, Leo. Eu gosto de você. Nosso namoro foi muito bom, fiquei com você por gostar de você, da gente juntos. E foi dando certo durante a faculdade pois nossas cabeças estavam focadas no mesmo objetivo, o fim do curso. Só que eu sabia que era só uma questão de tempo. Eu sabia que você não aceitaria fazer uma viagem desse tipo comigo. Eu sabia que você iria começar a pensar em casamento. Só que foi mais rápido do que eu imaginei. A minha intenção era conversar com você, depois dessa bagunça toda de fim de ano. Uma conversa só nossa, adulta. Mas aí você resolveu atropelar tudo que não teve outro jeito.

- Olha, eu confesso que nem sei mais o que dizer. Já vi que está decidida. Existe alguma coisa que eu possa fazer para que você mude de ideia?

- Não, Leo. Não existe.

- Sendo assim, melhor eu ir embora. Nem quero ver quando contar para meus pais. Eles adoram você.

- Sim, eu sei e também gosto muito deles. Gosto de toda a sua família, sempre me acolheram muito bem. E Leo, por favor, não vá infernizar a vida da Larissa, ok? Ela não fez por mal. Pelo contrário, fez pelo nosso bem.

- Que seja. Bom, se mudar de ideia, sei lá, sabe onde me encontrar.

- Sim, eu sei. Mas a gente não precisa se afastar por causa disso. Podemos continuar...

- Bianca, por favor, não. Não me peça isso. Uma coisa é eu ter que respeitar sua decisão, por mais absurda que eu a considere. Mas não pense que vamos virar melhores amigos. Para mim não vai ser simples assim. São mais de cinco anos juntos. Cinco anos de convivência, de amor, de carinho, de intimidade, de confiança e confidências. Cinco anos de planos, ainda que só da minha parte. Não dá para transformar tudo isso em passado assim, de uma hora para outra. Preciso de um tempo. Faça uma boa viagem. Espero que nada de ruim aconteça com você nessa sua aventura maluca. Viajar sozinha... E vamos deixar o tempo passar. Como diz a vó, “o futuro a Deus pertence”.

- Sim... Bom, então acho que é isso, não?

- É. Pelo menos por agora, é isso.

- Tudo bem então. Mande lembranças à sua família. Gostaria de poder me despedir deles pessoalmente, mas algo me diz que não vai ser uma boa ideia.

- De forma alguma. Só peço que me deixe contar para eles antes. Depois você pode ir visita-los, claro. Tenho certeza que isso não mudará o afeto que sentem por você. Sou eu que preciso de um espaço, de um tempo para digerir tudo isso. Bom, melhor eu ir agora.

- Ok, Leo. Também vou. Obrigado por tudo. Do fundo do coração. E espero que um dia entenda minha decisão.

- É, eu também espero poder entender tudo isso.