domingo, 28 de agosto de 2016

Texto 2 - O túnel

           O exercício dessa semana era fazer um texto que fosse bem diferente do anterior. Se naquele eu busquei descrever relações humanas, reflexões, deixando a ação de lado, neste eu precisei fazer o oposto. Aqui pouco importa a personalidade dos personagens, mas onde eles estão e o que fazem, como agem e reagem nas situações.
        A formatação está meio estranha pois eu digitei tudo no word e depois colei aqui, então os parágrafos ficaram desalinhados -  e eu não sei arrumar.
       Lembrando sempre que tratam-se de exercícios, de prática. Outras pessoas talvez guardem seus textos apenas para si, com medo de julgamentos ou de expor erros, falhas, pouca técnica. Pra mim é o contrário. Quero me expor para justamente ter a chance de outros olhos perceberem o que não está bom e me ajudarem a melhorar. Assim como tudo na vida, só melhoramos aquilo que praticamos. Por isso eis-me aqui. 

O TÚNEL
           
         A Ilha do Chapéu tinha esse nome pois, quando vista de cima, se assemelhava bastante com esse adorno outrora tão popular entre os homens. Ao centro, morros e montanhas se aglomeravam, enquanto que ao seu redor, em toda a circunferência da ilha, sua orla era plana, não havia um ponto onde o mar se encontrasse diretamente com a rocha, era apenas areia, formando uma praia única que circundava todo seu território, característica que formava a “aba” do chapéu.
        Apesar de famosa, a Ilha do Chapéu não era de fácil acesso, sendo possível alcança-la apenas pagando para algum pescador pela travessia, o que não ficava barato, dada a distância com relação ao continente, ou tirar a sorte grande de ser aprovado pela Marinha e ir de carona em uma das embarcações oficiais que seguiam semanalmente à ilha, para a troca do efetivo.
       Embora os oficiais da Marinha não fossem os únicos habitantes – havia também algumas vilas de pescadores espalhadas pelo território – a ilha não era um destino turístico, pois não possuía tal estrutura, além de se tratar de área de preservação e de pesquisas. Entretanto, alguns poucos cidadãos conseguiam autorização para visita-la, desde que arcassem com os custos das chamadas taxas de preservação ambiental, bem como do pouso em alguma das casas dos pescadores, os quais ofereciam os quintais como terreno de camping. Durante um bom tempo o acesso era restrito aos moradores, soldados e pesquisadores, mas o atual governador do Estado, sob a alegação de que se trata de propriedade do povo, determinou a abertura ao acesso dos demais cidadãos, desde que cumprissem com as inúmeras exigências para a obtenção do que popularmente era chamado de “Visto do Chapéu”. Porém, esporadicamente, a obtenção dessa permissão era facilitada, a pedido do governador, justamente para passar a impressão de um local democrático, do povo.
            Foi numa dessas brechas de benevolência que Bruno, Ana, Pedro e Taís conseguiram a tal permissão e se organizaram para conhecer a ilha. A iniciativa da viagem e toda a parte burocrática ficou a cargo de Bruno, a quem também coube convencer a namorada, Ana, a participar da aventura. Incentivado pela irmã, Pedro decidiu aproveitar os dias de folga que tinha disponíveis e decidiu acompanhar o casal, levando consigo Taís, sua “amiga colorida”, para usar a expressão com a qual eles mesmos definiam sua relação.
            Bruno tinha essa atração por destinos de natureza. Já havia estado em diversas partes do mundo, sempre procurando a praia perfeita, o sol perfeito (como se houvesse mais de um), o verde perfeito. Tendo conhecido do Caribe às Maldivas, passando pelo sul asiático e pelo icônico Havaí, o biólogo nascido nos rincões do Nordeste – cujas praias ele conhecia mais do que as tartarugas que ali desovam – sabia que não teria sossego enquanto não conhecesse aquele pedaço de solo brasileiro tão famoso e, ao mesmo tempo, tão desconhecido.
            Aos primeiros raios de sol, Bruno já sentiu a adrenalina em finalmente poder explorar, ainda que uma pequena parte, daquela ilha tão misteriosa. Contrariando as expectativas, a travessia do dia anterior havia sido incrivelmente tranquila, até mesmo tediosa. Os comprimidos e sacos plásticos trazidos para uso em caso de indisposição dos passageiros viraram peso morto. Nenhuma onda gigante, nenhum vento assustador, nenhum sacolejo mais forte. Nada. Foi como se estivessem navegando com motores desligados sobre um rio de águas calmas.
            O fato de ter conseguido uma autorização para uma estadia curta na ilha fez com que Bruno montasse um roteiro minucioso, ordenando as ações do dia de modo que ele pudesse explorar todos os pontos possíveis, levando em conta que tudo teria que ser feito a pé, com pouco equipamento, uma vez que eles não estavam autorizados a pernoitar em outro ponto que não o camping/quintal da família de pescadores que os hospedava. Isso o deixava um pouco irritado, uma vez que gastaria muito do seu pouco tempo disponível nos retornos ao camping, quando poderia dormir no meio de uma trilha e seguir viagem no dia seguinte.
            Bruno também não estava muito satisfeito com seus companheiros de viagem. Por ele, havia ido sozinho, mas não viu uma forma de dispensar sua namorada e seu cunhado, preferiu evitar futuros aborrecimentos e até mesmo um abalo maior em seu relacionamento, que já não vinha muito bem das pernas. Julgava que a presença de pessoas que não tinham o mesmo objetivo que ele naquela viagem o atrasasse, diminuísse ainda mais o pouco tempo disponível que ele tinha para aquela exploração. Além disso, ele sabia que só havia conseguido a tal autorização para acessar a ilha graças à influência de Taís, filha de um oficial já reformado, porém figura muito respeitada junto à Marinha. Por certo preferia não ter que depender de favores alheios, mas ou era assim, ou não era. Pois então que fosse.
            Naquele dia, o primeiro, Bruno havia decidido que iria em busca da Cachoeira do Sol. Segundo as versões passadas adiante pelo boca a boca, ela teria recebido esse nome pois graças à sua localização peculiar a luz solar atinge suas águas durante todo o dia; não havendo nuvens no céu, há sol refletindo de forma ininterrupta em suas águas, as quais imediatamente após a queda formam um lago cristalino, onde é possível banhar-se durante todo o dia sem sentir frio e, ainda, observando arco-íris permanentes que se formam ao redor.
            Na noite anterior Bruno havia sido taxativo, sairia para a trilha no horário marcado, sem tolerar atrasos. Caso alguém resolvesse ficar na barraca, ele não insistiria para que fizessem de outra forma – no fundo desejava que os três assim o fizessem – seguiria sozinho e depois mostraria as fotos. Porém, para sua surpresa, todos estavam a postos no momento combinado, igualmente ansiosos para desbravar os arredores.
            Como a ilha não era um ponto turístico, não havia sinalização nas trilhas, a orientação ficava a cargo da bússola e do solo pisado que desenhava o caminho adiante. Bruno até tentou encontrar mapas na internet, nos poucos fóruns onde encontrou tópicos sobre a ilha e até mesmo em páginas da Marinha, mas não teve sucesso. Os raros comentários que encontrou diziam a mesma coisa: leve bússola, nunca saia da trilha e fique atento ao relógio, pois ficar no meio da mata sem a luz do sol não é aconselhável. Desnecessário dizer que não há sinal de celular, sendo que a única forma de contato com o continente é através do rádio existente na base da Marinha. Sinalizadores não são permitidos na ilha, para evitar danos aos animais e até mesmo incêndio. Inclusive – e isso é algo que eles só descobriram após conseguirem a autorização para acessar a ilha – os visitantes precisam assinar um termo de responsabilidade, ficando cientes de que não há na Ilha do Chapéu uma estrutura de salvamento, não há equipe de resgate, tampouco hospitais ou qualquer tipo de estrutura para emergências. O pouco de assistência que há é direcionada aos oficiais e aos moradores.
            Depois de uma hora caminhando sem nenhum imprevisto ou reclamação dos demais integrantes daquele quarteto, Bruno notou ao lado direito da trilha por onde seguiam, uma pequena clareira que se seguia por uma outra trilha, mais íngreme, dessa vez bem mais estreita. Naquele período do ano, por conta das chuvas constantes, as árvores estavam frondosas, em franco crescimento, o que tornava a mata fechada, com visibilidade limitada; ainda que houvesse a trilha, não era possível avistar o caminho adiante, era preciso segui-lo e ir descobrindo aos poucos.      Sem hesitar, Bruno tomou o rumo dessa nova trilha.
            - Ei, mas você disse que o aconselhável era seguir a trilha sem se desviar. Mudou de ideia? – protestou Pedro.
            - É, amor, essa trilha na qual estamos é mais ampla. Essa outra parece que não é usada há muito tempo. Tem certeza? – questionou Ana.
            - Sim, é uma trilha menor – disse Bruno – mas não deixa de ser uma trilha. Além disso, reparem, ela é mais íngreme, logo vamos chegar mais rápido a algum ponto mais elevado. E cachoeiras ficam nos pontos mais altos, certo? E outra, existe a chance de termos uma visão mais ampla da ilha, caso encontremos uma clareira maior lá em cima. Eu vou subir. Vocês vêm?
            - Ai, Pê, será? – titubeou Taís
            - Não sei Tatá. Se bem que, embora seja mais estreita, ainda é uma trilha, não tem como a gente se perder. Desde que a gente não se embrenhe na mata fechada, mantenha sempre uma referência como caminho, não deve dar problema. E faz sentido o que o Bruno disse, com relação a chegar mais rápido no topo. – ponderou Pedro.
            - Bom, nós já caminhamos por uma hora, devemos estar de volta ainda com o dia claro, ou seja, no máximo às seis da tarde. Proponho que sigamos em frente por mais cinco horas, no máximo. Daí, ao meio-dia, damos meia volta e retornamos pelo mesmo caminho, independente do que encontrarmos, pois com outras seis horas caminhando estaremos de volta no acampamento. Fechado?  - propôs Bruno.
            Ante a concordância de todos, seguiram em frente.
            Depois de quase duas horas subindo por aquele caminho sem qualquer novidade, sem sequer visualizar algum animal, exótico ou não, na companhia apenas uns dos outros e de árvores, árvores e mais árvores, uma mudança na paisagem finalmente se apresentou. O cansaço – causado mais pelo tédio do que pelo esforço – desapareceu assim que Bruno percebeu que a subida estava no fim, que em mais alguns passos eles iriam atingir solo plano, mais uma clareira, dessa vez bem maior que a primeira.
            Assim que a subida terminou, eles se surpreenderem com o que viram. Trilhos de trem.
            Estático, Bruno tenta entender a presença daqueles trilhos ali, no meio daquela mata fechada, àquela altitude, naquela ilha tão isolada. Demora para dizer alguma coisa.
            - Mas gente – Taís quebrou o silêncio – como assim? Digo, trem, aqui? Para onde vai? De onde vem? Mas tem estação nesse lugar? Será que a gente caiu em algum portal e não percebeu? Estamos no futuro e a humanidade já pereceu, igual ao Planeta dos Macacos?
            - Embora eu não ache que seja algo do gênero, Tatá – prosseguiu Pedro – eu também não consigo entender o que uma estrada de ferro está fazendo num lugar como esse...
           - Bruno? – perguntou Ana – Amor? Você tem alguma ideia?
           - Não, nenhuma ideia – disse Bruno, como que saindo de um transe.
            - Talvez – prosseguiu o biólogo – isso tenha sido usado como transporte de materiais de construção, ou equipamentos, pois podem existir outras bases da Marinha na ilha, talvez desativadas. Na verdade eu estou chutando, não faço ideia do que seja isso.
            - Bom, seja lá o que for, pelo menos deu um gás novo a essa nossa caminhada – disse Pedro – temos pela frente quanto ainda, umas três horas antes de voltarmos? Podemos seguir esses trilhos e ver onde chegamos. Pelo menos o caminho não perderemos, pois eles serão nossa referência pare retornarmos.
            - Isso é verdade. Mas Bruno, e agora? Para que lado? Esquerda ou direita? – indagou Taís.
            - Esquerda – Bruno foi categórico – Reparem que do lado esquerdo os trilhos seguem acima. É quase imperceptível, mas com atenção percebe-se que desse lado nós continuaremos subindo.
            - Então, vamos logo antes que tenhamos que dar meia-volta. – pediu Ana.
            Não muito tempo depois de seguirem pela esquerda, os dois casais chegaram a algo ainda mais surpreendente do que os trilhos: um túnel. Não era uma caverna, uma fenda na rocha por onde convenientemente os trilhos passavam, mas uma abertura feita pelas mãos do homem. Impossível não concluir que realmente, em algum momento da história, aquele local foi de intensa atividade humana, embora igualmente impossível determinar os motivos de uma estrutura feito aquela em local tão remoto.
            Por alguns minutos os quatro ficaram defronte à entrada do túnel, o qual era grande o suficiente para permitir a passagem de um trem cargueiro, tentando decidir se entrariam ou não no mesmo – embora ainda não tivessem verbalizado tal pensamento, era só nisso que pensavam.
            - Bom, como temos duas lanternas, creio que seja suficiente para entrarmos, ainda que por alguns metros – propôs Bruno.
            - Na verdade – Pedro interrompeu – temos uma lanterna só. A minha eu deixei na barraca, já que a ideia era voltar ainda com a luz do dia. Pensei em salvar a bateria para a noite...
          - Calma, amor, pois eu e Tatá trouxemos nossos celulares – interveio Ana. Aliás, não trouxeram os seus, para tirar fotos? Podemos usar as lanternas deles. Claro que não é mesma coisa, mas ajuda, eu acho...
            - Sim, claro – suspirou Bruno – na verdade não sei como eu não deixei a minha lá também, afinal quem iria imaginar que encontraríamos um túnel no meio da Ilha do Chapéu?
            - Olha só – disse Taís, apreensiva – se vamos entrar, temos que tomar cuidado. Não dá para saber o tamanho desse túnel, pois não dá para ver nenhuma luz do outro lado ainda. Além da escuridão, tem os trilhos e os dormentes, que vão dificultar nossa caminhada e mais ainda, a pior parte, vai saber que tipo de bicho existe aí dentro.
            - Engraçado que, agora que você disse isso eu me dei conta de que não vimos animal algum pelo caminho. Coisa mais estranha, um lugar como esse, quase mata virgem, sem animais? Bruno, você que é biólogo, pensa o que a respeito? – perguntou Pedro.
            - Realmente, eu notei isso também. Só que eu não faço ideia, nunca vi nada parecido, nem na prática nem na teoria, nunca estudei nada assim, nem sei que nome se dá a esse fenômeno. Bom, mas embora eu esteja intrigado com isso, não é agora que eu vou descobrir. E, se pensarmos pelo lado positivo, se no meio dessa mata exuberante não existem animais, acho difícil alguma criatura dentro desse túnel escuro e sem vida – no sentido literal e figurado da expressão.
            Assim, Bruno sacou sua lanterna da mochila, seguido por Ana, Tais e Pedro, cada um munido com seus respectivos celulares, com as luzes dos flashes fazendo as vezes de farolete.
            Como percebeu Taís, o túnel era muito escuro, impossível determinar sua extensão, pois não existia qualquer iluminação que não fosse a das lanternas ou aquela que vinha por onde entraram. Além de escuro, apresentava uma umidade elevada; era possível ouvir em alguns pontos o barulho de gotas caindo em poças, fato que enchia Bruno de esperança de estarem perto da Cachoeira do Sol, ou ao menos de algum outro fluxo ou reservatório de água, uma vez que não chovia.
            Já haviam avançado o suficiente para não mais enxergarem a entrada. A iluminação que tinham provinha apenas de forma artificial. Até então, todos em silêncio, a não ser pelas exclamações quando um ou outro tropeçava nos trilhos. Andavam todos juntos, Bruno direcionando o facho de luz à frente do grupo, também iluminando o chão, enquanto os demais clareavam, ainda que parcamente, o teto e as paredes conforme avançavam.
            Subitamente, Ana para de se mover, segurando Bruno pelo braço.
            - Vocês ouviram? - sussurrou Ana.
            - Eu ouvi também! Pareceu uma respiração, um grunhido. Ai gente, vamos voltar agora! – exclamou Taís         
            - Tatá – disse Pedro, puxando Taís para perto de si, pelo braço – agora não é hora de perder a calma. Sim, eu também ouvi. Seja lá o que for, está vivo e pode não gostar de barulho. Vamos sair daqui sim, mas sem desespero. Se corrermos podemos cair nesses trilhos. Bruno, Ana, vamos agora.
            - Desliguem as luzes – ordenou Pedro.
            - Você tá louco? – espantou-se Ana – Bruno, pelo amor de Deus, vamos embora daqui!
            - Apaguem! – insistiu Bruno – as luzes podem guiar o que quer que seja que fez esse barulho em nossa direção. Desliguem as lanternas e vamos tentar caminhar de volta no escuro um pouco. E em silêncio!
            Todos obedeceram e, instintivamente, colocaram-se um de costas pro outro, na tentativa de se protegerem de qualquer coisa que os atacassem pelas costas. Em seguida, começaram a caminhar, ainda naquela formação circular, na direção que acreditavam ser o retorno para a entrada do túnel.
            - Assim não vai dar certo, não vamos avançar todos enroscados desse jeito. Vamos nos soltar, cada um pega a sua lanterna. Ligamos todas ao mesmo tempo e corremos pela lateral dos trilhos, assim evitamos os dormentes. Eu não sei o que foi aquilo e não quero saber o que é. Vamos fazer como disse, ok? – murmurou Pedro, tentando não chamar a atenção daquilo que nem ele sabia o que era.
            Então, ao sinal de Pedro, os quatro se afastaram um dos outros e procuraram suas lanternas.
            Pedro ouviu, dessa vez muito próximo, o mesmo barulho de minutos atrás. Era o som de uma respiração ofegante, gutural, reconhecia como algo humano, embora também percebesse uma espécie de líquido sendo aspirado e expirado, como saliva em grande quantidade.
            Assim que ouviu o mesmo som que Pedro, Taís sentiu o ar se movimentar ao seu lado, como se algo tivesse passado voando bem perto da sua cabeça. Deu um grito, ao mesmo tempo que apontou a lanterna do celular para a direção onde deveria estar Pedro.
            - Pedro! Ah meu Deus! Gente, cadê o Pedro!
            Nervosa, ao tentar ligar a lanterna do seu telefone, Ana deixou o aparelho escorregar de suas mãos e percebeu, pelos ouvidos, que ele caiu numa poça d’água. Duas fontes de luz a menos.
            Bruno apontou a lanterna para a mesma direção em que Taís e teve uma visão que desejaria nunca ter tido.
            Uma criatura humanoide, com mais de dois metros de altura, de compleição física forte, estraçalhava com os dentes o pescoço de Pedro, que jazia inerte nas mãos daquela figura monstruosa.
            - Vamos embora daqui agora! Ana, me dê sua mão! Taís, venha e não olhe para trás!
            - Pedro!! Meu Deus do céu! Bruno! Ana, o seu irmão! Precisamos salvá-lo!
            - Não há mais o que fazer, Taís! Temos que deixar o Pedro! Sim, ele é meu irmão, mas é tarde demais! Temos que escapar agora antes que esse demônio venha atrás de gente! – gritou Ana, puxando Taís pela manga da blusa.
            - Agora não é hora de pensar em nada a não ser sair daqui. Ana, por favor, me dê a sua mão, agora! Vamos! Taís, Pedro morreu, você precisa correr!
            O monstro soltou um urro apavorante e voltou sua cabeça em direção ao trio. Ainda com a lanterna apontada na direção da criatura, Bruno percebeu quando o facho de luz atingiu a besta nos olhos e esta os protegeu com as mãos.
            - Ele deve viver aqui nessa escuridão há tanto tempo que está muito sensível à luz. Vocês duas vão seguindo com a ajuda do celular e eu vou logo atrás, atrasando esse monstro com a lanterna! Talvez assim ganhemos tempos até chegarmos a entrada do túnel. Vão!
            Ana tomou o celular das mãos de Taís e ambas saíram em disparada, tentando não tropeçar nos trilhos.
            - Pela lateral! Corram pela lateral do trilho para não pisarem nos dormentes!
            A criatura parecia faminta, pois mesmo irritada com a luz em seu rosto, continuava a arrancar pedaços do corpo de Pedro.
            Com o coração em disparada, a adrenalina preenchendo suas veias, Bruno começou a correr logo atrás das garotas, em dúvida se deveria olhar para trás e checar se o demônio já os perseguia ou se olhava para o chão, a fim de evitar uma queda.
            Subitamente, novo urro. Bruno sabia que o monstro estava os perseguindo, conseguia sentir aquela respiração pavorosa se cada vez mais perto, assim como as passadas cada vez mais aceleradas sobre as pedras entre os dormentes.
            - Não olhe para trás, Ana! Continuem a correr, eu estou logo atrás de vocês!
            Bruno sentiu aquela aberração muito próxima, sabia que seria capturado. Então parou de correr se virou, apontando mais uma vez o facho de luz para os olhos do monstro. Após levar as mãos monstruosas em frente aos olhos, a criatura deu dois passos para trás e, na sequência, ainda com as mãos no rosto, iniciou o que parecia ser uma corrida, mas que se mostrou uma tomada de impulso, com o qual saltou sobre o biólogo.
            Ana sentiu suas costas arderem e logo em seguida não sentiu mais o chão sob seus pés.
            Taís pensou ter visto a amiga levitar, mas logo percebeu que o mostro havia pegado Ana pelo pescoço e a levantava, deixando-a na horizontal e, num gesto muito rápido e cheio de fúria, partiu a coluna da namorada de Bruno ao meio.
            Em choque, só conseguiu se mover quando Bruno, correndo, pegou em seu braço e a forçou a se mexer.
            - Corre, Taís! Temos alguns minutos enquanto ele se alimenta da Ana!
            - Como você consegue ser tão frio, meu Deus! É a sua namorada quem está ali!
            Bruno parou bruscamente e, se virando de frente para Taís, segurando-a pelos braços, disse num tom de voz sussurrante, porém cheio de fúria e desespero:
            - E você quer que eu faça o quê, hein? Que eu volte lá e diga “seu monstro, essa é minha namorada, pode larga-la?”. Por favor, Taís! Seja realista! Pedro e Ana estão mortos e nós vamos estar também se continuarmos aqui! Se você quer ficar e fazer um velório para eles, problema é seu. Só que eles já não vivem mais! Mas eu quero viver! E se você quer também, tem que começar a correr agora, já!
            Antes que Taís pudesse racionar qualquer resposta, Bruno percebeu que o monstro descartava o corpo de Ana – dessa vez levou menos tempo ocupado com o corpo do que ficou com Pedro – e olhava em sua direção.
            - Taís, corre! Se você quer viver, corre!
            Soltou os braços de Taís e saiu em disparada, iluminando o caminho com a lanterna.
            Bruno notou que os trilhos começavam a fazer uma curva suave à esquerda. Imaginava se estaria se aproximando da saída. Taís vinha logo atrás.
            Ao concluir a curva, o choque. Uma rocha bloqueava o caminho.
            Sem saber se o monstro já os alcançava, Bruno buscou com a luz do farolete uma passagem por debaixo da rocha. Assim que Taís, ofegante e chorosa, parou ao seu lado, ele visualizou um buraco. A tensão do momento não permitia avaliar de forma minuciosa se o vão era suficiente para que passassem, um a um, rastejando. Tirou a mochila das costas, deixando-a cair no chão.
            - Bruno! É ele! Ele vai nos matar! Meu Deus!
            Imediatamente, Bruno se atirou ao chão, encaixou a parte traseira da lanterna na boca e rastejou pelo vão debaixo da rocha. Para sua surpresa, o espaço era suficiente para que passasse sem dificuldades. Já do outro lado, Bruno virou de frente para o buraco, com a lanterna na mão e gritou para que Taís passasse.
            Por conta do desespero, da ânsia pela fuga, Taís esqueceu de tirar a mochila das costas quando se jogou ao chão e iniciou a passagem pelo buraco. Entalou. Não conseguia avançar nem retroceder.
            - Vamos, segure na minha mão!
            - Eu não alcanço! Estou presa! Bruno, me ajuda!
            - Tente alcançar e minha mão que eu puxo você!
            - Não consigo! Meu Deus, me ajuda! Bruno!
            Ao se deitar no chão e apontar a lanterna para onde estava Taís, viu a expressão de horror da garota, um misto de medo, desespero e, logo em seguida, dor. A besta havia agarrado Tais, puxando-a pelas pernas, dividindo o corpo já morto em dois.
            Por um instante, apesar de todo o horror que viveu nos últimos minutos, ou horas, não havia como saber, Bruno se sentiu seguro. Embora não soubesse como sairia dali, tampouco se havia uma saída, sentou-se e percebeu que aquela rocha era sua defesa, sua barreira contra aquela criatura monstruosa, a respeito da qual ele não sabia o que pensar.
            Encostado na parede do túnel, ofegante, com dores por todo o corpo, sedento, Bruno fechou os olhos, como uma tentativa de resgatar um pouco de forças para tentar seguir adiante. Ouvia do outro lado aquela respiração assustadora, a qual ele sabia que jamais o deixaria em paz, escapando ele ou não daquele lugar.
            Ao checar por passagens por baixo da rocha que bloqueava o caminho, Bruno não percebeu que ela não alcançava o teto. Foi por esse espaço que a besta venceu o bloqueio. Foi por esse espaço que a fera saltou sobre o biólogo, pousando sobre seu abdômen.
Foi por esse espaço que o fim chegou para Bruno.




sábado, 20 de agosto de 2016

Texto 1 - A herança

Recentemente comecei um curso, com o objetivo de me ajudar a criar disciplina para escrever, assim como conhecer técnicas para criação de estórias. Logo na primeira aula fizemos um exercício onde deveríamos criar um enredo, seus personagens, o tempo da ação e o gênero da narrativa. Depois disso, como exercício para ser feito em casa, o professor nos pediu que criássemos uma cena baseada naquele roteiro, com aquelas informações, utilizando também outros recursos, como os "momentos de virada" - aquela momento em que acontece uma surpresa, algo que muda o rumo da estória. Era pra ser uma cena curta, que coubesse em uma página. A minha deu cinco. Consegui editar e deixar em duas páginas - menos do que isso ficaria sem sentido. 
Aí eu resolvi publicar o texto maior aqui e vou fazê-lo sempre que eu produzir novos textos para a aula. Lá eu entrego de acordo com o que o professor pedir e aqui eu posto ele da forma como eu o concebi. Sendo assim, segue meu primeiro texto.
A HERANÇA

- Desconfiei mesmo que estaríamos todos aqui. Junior, Tito, Catarina, Sandra... Bem dizem que pra reunir família só com casamento ou velório.
- Bom dia para você também, Julinho. – respondeu Sandra, a caçula dos herdeiros, sem olhar para o irmão.
Os cinco filhos de Adolfo Mendes Tavares, convocados às pressas ante a notícia do falecimento do patriarca, se reencontravam depois de vinte anos afastados, época em que perderam a mãe. Ainda que os cinco herdeiros da família Mendes Tavares não se bicassem, tampouco fizessem questão de ser uma irmandade, um pensamento era comum a todos: tinham certeza de que a depressão e o câncer que ceifaram a vida de Dona Cecília Mendes Tavares, com tanta agressividade e em tão pouco tempo, foram causados pela infidelidade escancarada do marido. E agora estavam todos ali, reunidos naquela mansão estranha, onde pisavam pela primeira vez, uma das inúmeras propriedades adquiridas pelo pai ao longo dos anos de enriquecimento vertiginoso, graças à descoberta de petróleo sob o solo de seu, até então, único pedaço de chão.
- Mas e então – indagou Julinho – alguém aqui sabe o que matou o velho? Será que foi remorso?
- Julio, não seja desrespeitoso! – repreendeu Catarina, católica convertida à fé evangélica - Concordo que nosso pai nunca foi santo e você sabe bem o que penso sobre a morte de mamãe, mas ainda assim, ele agora não está mais entre nós e não nos cabe julgá-lo. Deus o fará.
- Pronto! – resmungou Adolfo Junior, o primogênito - Já vai começar a pregação. Quanto dessa herança vai virar dízimo, hein Catarina?
- Sempre inconveniente, né Junior? – disse Tito, o filho médico do qual Dona Cecília tanto se orgulhava. “Foi um menino doente, fraquinho, mirrado e hoje é um doutor!”, dizia ela.
Subitamente, surge no cômodo um homem que, assim como a mansão que agora os abrigava, era totalmente estranho aos irmãos.
- Bom dia a todos. Meu nome é Renato Lopes e sou o testamenteiro do Sr. Adolfo Mendes Tavares. Como já é de vosso conhecimento, vocês foram trazidos aqui por serem os únicos herdeiros vivos do Sr. Adolfo e, por consequência, beneficiários de todo o patrimônio conquistado por ele ao longo dos anos.
- Com licença – interrompeu Sandra, erguendo o braço direito – mas já estamos aqui há algum tempo e ainda não sabemos o que vitimou nosso pai, não vimos o corpo, tampouco sabemos detalhes do velório, enterro, ou cremação, sei lá. O senhor poderia fazer a gentileza de nos esclarecer?
- Certamente, senhora. Mas para isso eu vou chamar a pessoa mais indicada para prestar os esclarecimentos que buscam. Com licença.
O testamenteiro retorna pela porta por onde entrou, abre a segunda folha da mesma e libera a passagem para uma cadeira de rodas, a qual é conduzida por um homem velho, com poucos fios brancos sobre a cabeça, usando um pijama já puído, como se tivesse sido emprestado de um hospital, contrastando com a decoração suntuosa do cômodo onde estavam. Junto à cadeira, pende uma bolsa coletora de urina e, na parte traseira, um tubo metálico, verde, que armazena o oxigênio que é conduzido até as narinas daquela figura decrépita.
- Mas que palhaçada é essa! – gritou Julinho, levantando-se subitamente da cadeira.
- Meu senhor Jesus Cristo! – exclamou Catarina, levando às mãos à boca.
- Papai! – gritou Sandra – O Senhor não morreu?
- Não, Sandra, eu ainda estou aqui.
- E será que o senhor poderia nos explicar o que significa isso tudo? Papai. – rebateu ironicamente o filho Tito.
- Eu sabia que se dissesse a vocês que estava à beira da morte e queria revê-los, nenhum de vocês viria me visitar.
- É claro que eu viria! – disse o primogênito.
- Fica quieto Junior, você seria o primeiro a dar qualquer desculpa para não vir. Sempre bajulador, nunca faz nada sem esperar uma recompensa, igual cachorro atrás de biscoito. E não me interrompa mais!
Uma forte tosse acomete Adolfo, sendo necessário alguns minutos para o patriarca se recompor.
- Pois bem, se me permitirem explico o que realmente estão fazendo aqui. Como é visível, embora ainda não tenha morrido, estou quase lá. Segundo meu médico eu posso durar tanto mais uns meses como uma semana, ou ainda algumas horas. Como vocês também sabem, são meus únicos herdeiros. Eu reconheço todas as coisas que fiz com a mãe de vocês, mas se serve de consolo, eu nunca tive um bastardo. Isso nunca! Logo, toda a minha fortuna é de vocês cinco. Eu até poderia doar tudo isso, já que vocês viraram as costas para mim antes mesmo de eu descobrir o petróleo, mas eu conheço um pouco da legislação e sei que nesse país, testamento não tem muito valor se a intenção é deixar os filhos e a esposa sem nada. Até pensei em fazer isso, só para terem o trabalho de procurarem advogado e esperarem anos pelo julgamento. Mas aí pensei melhor e vou deixar tudo para vocês mesmo.
- Finalmente, não é senhor Adolfo, bateu o remorso não só pelo que fez com a nossa mãe mas também da forma como nos negligenciou a vida toda. E antes que venha dizer que “nunca faltou nada” para gente, eu digo que faltou sim, muita coisa. Nunca tivemos um pai, apenas um provedor – desabafou Julinho.
- Bom, Julio César, embora eu reconheça que fiz muito mal a vocês no passado, eu não sinto remorso. Embora eu tenha certeza que pensem que estou assim por uma espécie de castigo por tudo o que fiz em vida, eu não acredito nisso. Ninguém é eterno nesse mundo, todos morrem. A diferença é que uns morrem cedo, outros, tarde; uns morrem de repente, outros padecem por muito tempo. Eu não estou com medo de morrer, pois encaro a morte como a cura, o fim de todo sofrimento, limpeza, descanso, paz. Meu maior medo era sofrer antes de morrer. Eis-me aqui nessa situação. Agora não tenho medo de mais nada. Enfim, como eu estava dizendo, a razão para trazê-los aqui é a seguinte: todos vocês terão direito à parte que lhes cabe da minha fortuna, desde que – ao dizer isso, Adolfo levantou a mão direita com o dedo indicador em riste – vocês permaneçam nesta casa, comigo, como meus cuidadores, até meu último suspiro. Aquele que resolver ir embora automaticamente abre mão da sua parte na herança. Sem telefone, sem computador. O único contato que farão com o mundo exterior será para um membro da família, explicando o motivo de não voltarem para casa e também para pedir a esse mesmo membro que separe roupas e itens pessoais para serem trazidos para cá, os quais serão retirados por algum funcionário meu.
- O senhor enlouqueceu de vez, só pode. Senhor Renato, seja imparcial e como advogado nos diga se ele pode fazer isso. É um absurdo! – esbravejou Tito.
- Sim, senhor Tito, ele pode. Como o próprio senhor Adolfo disse, existem outros meios para que vocês reclamem a herança, mas isso vai ficar ao encargo de cada um. Ainda que algum juiz decida a seu favor, essa decisão pode demorar anos e isso vai lhe custar uma boa quantia em honorários...
- A mim, pouco importa. – disse Julio, levantando-se da cadeira e vestindo seu casaco – Eu vou embora, não vou dar aplauso pra maluco. Nunca precisei do dinheiro desse petróleo para nada, sou o que sou por meus próprios méritos, meu esforço e dedicação, dinheiro do meu trabalho. Não vou abrir mão disso. Ainda que o senhor morra daqui cinco minutos, mas e se durar mais um, dois meses? Eu não posso, não quero e não vou ficar esse tempo todo longe da minha sala de aula, dos meus alunos, da minha casa, muito menos dos meus cachorros. Francamente, nunca achei que fosse passar por isso. Irmandade, tchau para quem fica. Dispenso os abraços de despedida fajutos. Passem todos bem. – e assim, Julio virou as costas e saiu porta afora, sem sequer esperar por alguma reação do pai ou dos demais presentes.
- Olhe, meu pai, ainda que o senhor pedisse para que eu ajudasse como enfermeira, cuidadora, eu o faria. – Catarina mostrava uma mistura de frustração e emoção no olhar. – Talvez seja o nosso senhor Deus que esteja me colocando nessa provação, de cuidar do meu pai no fim dos seus dias, mesmo nunca tendo sido cuidada pelo senhor. Mas eu vou assumir o risco de ser punida pelo Pai Eterno e não vou compactuar com isso. De que adiantou toda essa fortuna, todas essas posses, esses objetos? É essa a história da qual o senhor se orgulha? Deixar o legado de uma família destroçada, esfacelada? Nem com esse sofrimento todo o senhor aprendeu, meu pai! E ainda quer fazer esse jogo doentio, mesquinho. O senhor está, no fim dos seus dias, tentando comprar o amor e a atenção dos seus filhos. Acontece que essas são coisas que não são compradas, mas cultivadas, estimuladas, ensinadas, nós temos que dar primeiro para depois recebermos em troca. E isso, senhor Adolfo Mendes Tavares, o senhor nunca foi capaz de fazer. Que Deus me perdoe ou que me castigue da forma que Sua infinita sabedoria determinar, mas eu não ficarei aqui. Que Ele tenha misericórdia da sua alma, pois só assim para que o senhor tenha alguma paz. Meus irmãos, apesar dos pesares, fico feliz em revê-los. Adeus a todos. Deus os abençoe.
- Querem saber? Julinho e Catarina tem razão! – exclamou Tito ao se levantar, também ensaiando sua saída da mansão. - Assim como ele, eu tenho a vida ganha. Ainda que eu nunca consiga chegar perto de possuir uma fortuna como essa com o meu trabalho, o que eu ganho é mais do que suficiente para eu dar uma vida confortável para a minha família, mas mais do que isso, para eu ter a minha consciência tranquila, e isso não há preço, dinheiro que pague! E digo mais, ninguém aqui está pensando em como gerir esse patrimônio todo. Sim, acham que vai ser só receber e fica tudo lindo? Bem capaz de torrarem tudo num piscar de olhos. Junior, Sandra, boa sorte para vocês. Só preciso sair pela porta para declarar minha desistência dessa herança, não é? Pois bem. Estou saindo por ela agora. Adeus.
Na sala restaram Adolfo, Sandra, Junior e o testamenteiro. Após a saída abrupta e revoltosa dos três outros herdeiros, que agora não mais o são, fez-se um momento de silêncio que só não foi absoluto pela respiração ofegante do patriarca.
- Pois bem, meus filhos, Adolfo Junior e Sandrinha, minha caçula. Confesso que eu imaginava essa reação dos seus irmãos, quero dizer, Catarina me surpreendeu, pois como virou evangélica fervorosa, com direito a saia jeans e cabelo batendo na bunda, imaginei que fosse querer bancar a virtuosa, mas com o olho no dinheiro, como costuma ser em muitas dessas igrejas. Mas vocês não. Afinal, Junior, para você vai ser a glória, não é mesmo? Depois de uma vida incerta, sem uma profissão definida, vivendo de rolos, até parar na cadeia você já foi, sujando meu nome, seu infeliz...
- Como você sabe de tudo isso? Por acaso mandou nos investigar? – disse Junior, num tom de voz que misturava vergonha e revolta.
- Claro que sim. Acho que você faz não ideia do quanto dinheiro eu possuo. Posso comprar e contratar quem ou o que eu quiser. Eu queria saber não apenas se estavam vivos, mas o que andavam fazendo da vida. Catarina me desapontou quanto virou crente. Não pela religião, mas por que abandonou a psicologia para virar dona de casa e mulher de pastor. Tito não me surpreendeu, sempre muito inteligente, mesmo tendo sido um moleque frágil, vivia doente esse menino, mas acabou ficando forte e virou médico. Nossa, como a mãe de vocês enchia a boca para falar do filho médico dela. Já Julio César também me surpreendeu. Não que o achasse burro, nunca foi, mas com essa história de ser maricas achei que iria parar na televisão, num salão de beleza ou debaixo da terra por causa daquela doença lá. No fim, paguei minha língua quando descobri que ele havia se tornado professor universitário, com livro premiado e tudo.
- Credo papai, parece que o senhor só os elogia pois foram embora. Coitado do Junior. – interveio Sandra em defesa do irmão, para a surpresa do mesmo.
- Não diga bobagem Sandrinha. É a verdade. E você, tão bela, minha caçulinha. Sabia que tem a cara da sua mãe? A semelhança é incrível, passariam por gêmeas. Pena que só herdou a cara dela. Casar por dinheiro, Sandra? Por que não fez como seus irmãos, tirando o Junior, claro, e se tornou alguém na vida? Até Catarina se formou psicóloga. E você? Foi se juntar com aquele carcamano! Bom, mas eu não estou aqui para julgar as escolhas de vocês.
Tosse. Mais tosse. Sangue no lenço. Tosse.
- Antes que eu morra de vez, vamos resolver logo essa situação. Como seus irmãos foram embora feitos uns doidos, não ouviram todas as condições. Embora eu tenha dito que só terá direito à herança aqueles que ficarem ao meu lado até minha morte, caso apenas um de vocês permaneça, automaticamente coloca as mãos e o nome na minha fortuna, não precisa esperar eu morrer para garantir, apesar de que receber mesmo só vai quando eu bater as botas.
Sandra e Junior trocam olhares surpresos.
- Junior, eu sei que você não é fã de qualquer tipo de trabalho, seja ele braçal ou mental. Sei também que você adora uma farra e um rabo de saia, como seu velho pai aqui. Quantos filhos mesmo? Cinco? Com três mulheres diferentes? Inclusive está com a pensão atrasada, que eu sei. Já, já sai mais um mandado para te mandar para o xilindró. Pois então, com o dinheiro que herdaria, você pode pagar a pensão para esses cinco filhos e fazer mais uns dez. Mesmo que resolva gastar tudo na farra, é mais provável que seu fígado acabe antes do que o dinheiro.
Por um momento Adolfo poderia jurar que viu os olhos de Junior brilharem.
- Já você, Sandrinha, ainda que tenha se casado com aquele cantineiro, o patrimônio dele está muito aquém do meu, muito mesmo. Se você for a herdeira da minha fortuna, mesmo que divida a metade com seu irmão, terá muito mais dinheiro que o carcamano. Nunca mais vai precisar se deitar com aquele velho seboso. Uma moça tão linda feito você com um homem asqueroso feito aquele... Eu sei que não estou em condições de julgar a aparência de ninguém, mas mesmo assim. Pense, você poderá ter todos os homens que quiser ao seu lado, poderá escolher, viajar o mundo, comer em qualquer restaurante que quiser, pois eu sei que o velho do seu marido raramente leva você jantar em outros restaurantes que não os dele. Além de tudo, veja que Junior está correndo sério risco de ser preso. Se isso acontecer, automaticamente ele perde o direito e tudo fica para você.
- Como assim, pai! O senhor disse que perderia quem saísse daqui por vontade própria! – Junior parecia uma criança manhosa ao dizer isso. – Agora, se eu for preso eu perco também?
Adolfo olhou para o testamenteiro, que revirou os olhos.
- Sim, Junior. A intenção de tudo isso aqui é ter pelo menos um dos meus filhos ao meu lado quando chegar a minha morte. Pouco importa se você saiu daqui porque quis, se foi preso ou teve um ataque do coração e morreu antes de mim. Só recebe minha herança que aqui estiver quando eu finalmente descansar, a menos, é claro, que seja o último.
Nesse momento surge uma enfermeira trazendo uma bandeja com um copo d’água e vários comprimidos.
- Senhor Adolfo, sua medicação. Aconselho o senhor a encerrar o assunto por ora, pois precisamos trocar sua bolsa de urina e também seria bom checar a bolsa de colostomia.
- Bom, vocês ouviram a moça. Está na hora de decidirem o que farão com o futuro de vocês. Vão embora e retomam suas vidas, ou colocam essas mesmas vidas em suspensão lá fora, para viverem exclusivamente em minha função, até que eu durma em definitivo. Junior, Sandrinha, afinal, como é que vai ser?