O exercício dessa semana era
fazer um texto que fosse bem diferente do anterior. Se naquele eu busquei
descrever relações humanas, reflexões, deixando a ação de lado, neste eu
precisei fazer o oposto. Aqui pouco importa a personalidade dos personagens, mas
onde eles estão e o que fazem, como agem e reagem nas situações.
A formatação está meio estranha pois eu
digitei tudo no word e depois colei aqui, então os parágrafos ficaram
desalinhados - e eu não sei arrumar.
Lembrando sempre que tratam-se de
exercícios, de prática. Outras pessoas talvez guardem seus textos apenas para
si, com medo de julgamentos ou de expor erros, falhas, pouca técnica. Pra mim é
o contrário. Quero me expor para justamente ter a chance de outros olhos
perceberem o que não está bom e me ajudarem a melhorar. Assim como tudo na
vida, só melhoramos aquilo que praticamos. Por isso eis-me aqui.
O TÚNEL
A Ilha do Chapéu tinha esse nome
pois, quando vista de cima, se assemelhava bastante com esse adorno outrora tão
popular entre os homens. Ao centro, morros e montanhas se aglomeravam, enquanto
que ao seu redor, em toda a circunferência da ilha, sua orla era plana, não
havia um ponto onde o mar se encontrasse diretamente com a rocha, era apenas
areia, formando uma praia única que circundava todo seu território, característica
que formava a “aba” do chapéu.
Apesar de famosa, a Ilha do Chapéu
não era de fácil acesso, sendo possível alcança-la apenas pagando para algum
pescador pela travessia, o que não ficava barato, dada a distância com relação
ao continente, ou tirar a sorte grande de ser aprovado pela Marinha e ir de
carona em uma das embarcações oficiais que seguiam semanalmente à ilha, para a
troca do efetivo.
Embora os oficiais da Marinha não
fossem os únicos habitantes – havia também algumas vilas de pescadores
espalhadas pelo território – a ilha não era um destino turístico, pois não
possuía tal estrutura, além de se tratar de área de preservação e de pesquisas.
Entretanto, alguns poucos cidadãos conseguiam autorização para visita-la, desde
que arcassem com os custos das chamadas taxas de preservação ambiental, bem
como do pouso em alguma das casas dos pescadores, os quais ofereciam os
quintais como terreno de camping. Durante um bom tempo o acesso era restrito
aos moradores, soldados e pesquisadores, mas o atual governador do Estado, sob
a alegação de que se trata de propriedade do povo, determinou a abertura ao
acesso dos demais cidadãos, desde que cumprissem com as inúmeras exigências
para a obtenção do que popularmente era chamado de “Visto do Chapéu”. Porém,
esporadicamente, a obtenção dessa permissão era facilitada, a pedido do
governador, justamente para passar a impressão de um local democrático, do
povo.
Foi numa dessas brechas de
benevolência que Bruno, Ana, Pedro e Taís conseguiram a tal permissão e se
organizaram para conhecer a ilha. A iniciativa da viagem e toda a parte
burocrática ficou a cargo de Bruno, a quem também coube convencer a namorada,
Ana, a participar da aventura. Incentivado pela irmã, Pedro decidiu aproveitar
os dias de folga que tinha disponíveis e decidiu acompanhar o casal, levando
consigo Taís, sua “amiga colorida”, para usar a expressão com a qual eles
mesmos definiam sua relação.
Bruno tinha essa atração por
destinos de natureza. Já havia estado em diversas partes do mundo, sempre
procurando a praia perfeita, o sol perfeito (como se houvesse mais de um), o
verde perfeito. Tendo conhecido do Caribe às Maldivas, passando pelo sul
asiático e pelo icônico Havaí, o biólogo nascido nos rincões do Nordeste –
cujas praias ele conhecia mais do que as tartarugas que ali desovam – sabia que
não teria sossego enquanto não conhecesse aquele pedaço de solo brasileiro tão
famoso e, ao mesmo tempo, tão desconhecido.
Aos primeiros raios de sol, Bruno já
sentiu a adrenalina em finalmente poder explorar, ainda que uma pequena parte,
daquela ilha tão misteriosa. Contrariando as expectativas, a travessia do dia
anterior havia sido incrivelmente tranquila, até mesmo tediosa. Os comprimidos
e sacos plásticos trazidos para uso em caso de indisposição dos passageiros
viraram peso morto. Nenhuma onda gigante, nenhum vento assustador, nenhum
sacolejo mais forte. Nada. Foi como se estivessem navegando com motores
desligados sobre um rio de águas calmas.
O fato de ter conseguido uma
autorização para uma estadia curta na ilha fez com que Bruno montasse um
roteiro minucioso, ordenando as ações do dia de modo que ele pudesse explorar
todos os pontos possíveis, levando em conta que tudo teria que ser feito a pé,
com pouco equipamento, uma vez que eles não estavam autorizados a pernoitar em
outro ponto que não o camping/quintal da família de pescadores que os
hospedava. Isso o deixava um pouco irritado, uma vez que gastaria muito do seu
pouco tempo disponível nos retornos ao camping, quando poderia dormir no meio
de uma trilha e seguir viagem no dia seguinte.
Bruno também não estava muito
satisfeito com seus companheiros de viagem. Por ele, havia ido sozinho, mas não
viu uma forma de dispensar sua namorada e seu cunhado, preferiu evitar futuros
aborrecimentos e até mesmo um abalo maior em seu relacionamento, que já não
vinha muito bem das pernas. Julgava que a presença de pessoas que não tinham o
mesmo objetivo que ele naquela viagem o atrasasse, diminuísse ainda mais o
pouco tempo disponível que ele tinha para aquela exploração. Além disso, ele
sabia que só havia conseguido a tal autorização para acessar a ilha graças à
influência de Taís, filha de um oficial já reformado, porém figura muito
respeitada junto à Marinha. Por certo preferia não ter que depender de favores
alheios, mas ou era assim, ou não era. Pois então que fosse.
Naquele dia, o primeiro, Bruno havia
decidido que iria em busca da Cachoeira do Sol. Segundo as versões passadas
adiante pelo boca a boca, ela teria recebido esse nome pois graças à sua
localização peculiar a luz solar atinge suas águas durante todo o dia; não
havendo nuvens no céu, há sol refletindo de forma ininterrupta em suas águas,
as quais imediatamente após a queda formam um lago cristalino, onde é possível
banhar-se durante todo o dia sem sentir frio e, ainda, observando arco-íris
permanentes que se formam ao redor.
Na noite anterior Bruno havia sido
taxativo, sairia para a trilha no horário marcado, sem tolerar atrasos. Caso
alguém resolvesse ficar na barraca, ele não insistiria para que fizessem de
outra forma – no fundo desejava que os três assim o fizessem – seguiria sozinho
e depois mostraria as fotos. Porém, para sua surpresa, todos estavam a postos
no momento combinado, igualmente ansiosos para desbravar os arredores.
Como a ilha não era um ponto
turístico, não havia sinalização nas trilhas, a orientação ficava a cargo da
bússola e do solo pisado que desenhava o caminho adiante. Bruno até tentou
encontrar mapas na internet, nos poucos fóruns onde encontrou tópicos sobre a
ilha e até mesmo em páginas da Marinha, mas não teve sucesso. Os raros
comentários que encontrou diziam a mesma coisa: leve bússola, nunca saia da
trilha e fique atento ao relógio, pois ficar no meio da mata sem a luz do sol
não é aconselhável. Desnecessário dizer que não há sinal de celular, sendo que
a única forma de contato com o continente é através do rádio existente na base
da Marinha. Sinalizadores não são permitidos na ilha, para evitar danos aos
animais e até mesmo incêndio. Inclusive – e isso é algo que eles só descobriram
após conseguirem a autorização para acessar a ilha – os visitantes precisam
assinar um termo de responsabilidade, ficando cientes de que não há na Ilha do
Chapéu uma estrutura de salvamento, não há equipe de resgate, tampouco
hospitais ou qualquer tipo de estrutura para emergências. O pouco de
assistência que há é direcionada aos oficiais e aos moradores.
Depois de uma hora caminhando sem
nenhum imprevisto ou reclamação dos demais integrantes daquele quarteto, Bruno
notou ao lado direito da trilha por onde seguiam, uma pequena clareira que se
seguia por uma outra trilha, mais íngreme, dessa vez bem mais estreita. Naquele
período do ano, por conta das chuvas constantes, as árvores estavam frondosas,
em franco crescimento, o que tornava a mata fechada, com visibilidade limitada;
ainda que houvesse a trilha, não era possível avistar o caminho adiante, era
preciso segui-lo e ir descobrindo aos poucos. Sem
hesitar, Bruno tomou o rumo dessa nova trilha.
- Ei, mas você disse que o
aconselhável era seguir a trilha sem se desviar. Mudou de ideia? – protestou
Pedro.
- É, amor, essa trilha na qual
estamos é mais ampla. Essa outra parece que não é usada há muito tempo. Tem
certeza? – questionou Ana.
- Sim, é uma trilha menor – disse
Bruno – mas não deixa de ser uma trilha. Além disso, reparem, ela é mais
íngreme, logo vamos chegar mais rápido a algum ponto mais elevado. E cachoeiras
ficam nos pontos mais altos, certo? E outra, existe a chance de termos uma
visão mais ampla da ilha, caso encontremos uma clareira maior lá em cima. Eu
vou subir. Vocês vêm?
- Ai, Pê, será? – titubeou Taís
- Não sei Tatá. Se bem que, embora
seja mais estreita, ainda é uma trilha, não tem como a gente se perder. Desde
que a gente não se embrenhe na mata fechada, mantenha sempre uma referência
como caminho, não deve dar problema. E faz sentido o que o Bruno disse, com
relação a chegar mais rápido no topo. – ponderou Pedro.
- Bom, nós já caminhamos por uma
hora, devemos estar de volta ainda com o dia claro, ou seja, no máximo às seis
da tarde. Proponho que sigamos em frente por mais cinco horas, no máximo. Daí,
ao meio-dia, damos meia volta e retornamos pelo mesmo caminho, independente do
que encontrarmos, pois com outras seis horas caminhando estaremos de volta no
acampamento. Fechado? - propôs Bruno.
Ante a concordância de todos,
seguiram em frente.
Depois de quase duas horas subindo
por aquele caminho sem qualquer novidade, sem sequer visualizar algum animal,
exótico ou não, na companhia apenas uns dos outros e de árvores, árvores e mais
árvores, uma mudança na paisagem finalmente se apresentou. O cansaço – causado
mais pelo tédio do que pelo esforço – desapareceu assim que Bruno percebeu que
a subida estava no fim, que em mais alguns passos eles iriam atingir solo
plano, mais uma clareira, dessa vez bem maior que a primeira.
Assim que a subida terminou, eles se
surpreenderem com o que viram. Trilhos de trem.
Estático, Bruno tenta entender a
presença daqueles trilhos ali, no meio daquela mata fechada, àquela altitude,
naquela ilha tão isolada. Demora para dizer alguma coisa.
- Mas gente – Taís quebrou o
silêncio – como assim? Digo, trem, aqui? Para onde vai? De onde vem? Mas tem
estação nesse lugar? Será que a gente caiu em algum portal e não percebeu?
Estamos no futuro e a humanidade já pereceu, igual ao Planeta dos Macacos?
- Embora eu não ache que seja algo
do gênero, Tatá – prosseguiu Pedro – eu também não consigo entender o que uma
estrada de ferro está fazendo num lugar como esse...
- Bruno? – perguntou Ana – Amor?
Você tem alguma ideia?
- Não, nenhuma ideia – disse Bruno,
como que saindo de um transe.
- Talvez – prosseguiu o biólogo –
isso tenha sido usado como transporte de materiais de construção, ou
equipamentos, pois podem existir outras bases da Marinha na ilha, talvez
desativadas. Na verdade eu estou chutando, não faço ideia do que seja isso.
- Bom, seja lá o que for, pelo menos
deu um gás novo a essa nossa caminhada – disse Pedro – temos pela frente quanto
ainda, umas três horas antes de voltarmos? Podemos seguir esses trilhos e ver
onde chegamos. Pelo menos o caminho não perderemos, pois eles serão nossa
referência pare retornarmos.
- Isso é verdade. Mas Bruno, e
agora? Para que lado? Esquerda ou direita? – indagou Taís.
- Esquerda – Bruno foi categórico –
Reparem que do lado esquerdo os trilhos seguem acima. É quase imperceptível,
mas com atenção percebe-se que desse lado nós continuaremos subindo.
- Então, vamos logo antes que
tenhamos que dar meia-volta. – pediu Ana.
Não muito tempo depois de seguirem
pela esquerda, os dois casais chegaram a algo ainda mais surpreendente do que
os trilhos: um túnel. Não era uma caverna, uma fenda na rocha por onde
convenientemente os trilhos passavam, mas uma abertura feita pelas mãos do
homem. Impossível não concluir que realmente, em algum momento da história,
aquele local foi de intensa atividade humana, embora igualmente impossível
determinar os motivos de uma estrutura feito aquela em local tão remoto.
Por alguns minutos os quatro ficaram
defronte à entrada do túnel, o qual era grande o suficiente para permitir a
passagem de um trem cargueiro, tentando decidir se entrariam ou não no mesmo –
embora ainda não tivessem verbalizado tal pensamento, era só nisso que
pensavam.
- Bom, como temos duas lanternas,
creio que seja suficiente para entrarmos, ainda que por alguns metros – propôs
Bruno.
- Na verdade – Pedro interrompeu –
temos uma lanterna só. A minha eu deixei na barraca, já que a ideia era voltar
ainda com a luz do dia. Pensei em salvar a bateria para a noite...
- Calma, amor, pois eu e Tatá
trouxemos nossos celulares – interveio Ana. Aliás, não trouxeram os seus, para
tirar fotos? Podemos usar as lanternas deles. Claro que não é mesma coisa, mas
ajuda, eu acho...
- Sim, claro – suspirou Bruno – na
verdade não sei como eu não deixei a minha lá também, afinal quem iria imaginar
que encontraríamos um túnel no meio da Ilha do Chapéu?
- Olha só – disse Taís, apreensiva –
se vamos entrar, temos que tomar cuidado. Não dá para saber o tamanho desse
túnel, pois não dá para ver nenhuma luz do outro lado ainda. Além da escuridão,
tem os trilhos e os dormentes, que vão dificultar nossa caminhada e mais ainda,
a pior parte, vai saber que tipo de bicho existe aí dentro.
- Engraçado que, agora que você
disse isso eu me dei conta de que não vimos animal algum pelo caminho. Coisa
mais estranha, um lugar como esse, quase mata virgem, sem animais? Bruno, você
que é biólogo, pensa o que a respeito? – perguntou Pedro.
- Realmente, eu notei isso também.
Só que eu não faço ideia, nunca vi nada parecido, nem na prática nem na teoria,
nunca estudei nada assim, nem sei que nome se dá a esse fenômeno. Bom, mas
embora eu esteja intrigado com isso, não é agora que eu vou descobrir. E, se
pensarmos pelo lado positivo, se no meio dessa mata exuberante não existem
animais, acho difícil alguma criatura dentro desse túnel escuro e sem vida – no
sentido literal e figurado da expressão.
Assim, Bruno sacou sua lanterna da
mochila, seguido por Ana, Tais e Pedro, cada um munido com seus respectivos
celulares, com as luzes dos flashes fazendo as vezes de farolete.
Como percebeu Taís, o túnel era
muito escuro, impossível determinar sua extensão, pois não existia qualquer
iluminação que não fosse a das lanternas ou aquela que vinha por onde entraram.
Além de escuro, apresentava uma umidade elevada; era possível ouvir em alguns
pontos o barulho de gotas caindo em poças, fato que enchia Bruno de esperança
de estarem perto da Cachoeira do Sol, ou ao menos de algum outro fluxo ou
reservatório de água, uma vez que não chovia.
Já haviam avançado o suficiente para
não mais enxergarem a entrada. A iluminação que tinham provinha apenas de forma
artificial. Até então, todos em silêncio, a não ser pelas exclamações quando um
ou outro tropeçava nos trilhos. Andavam todos juntos, Bruno direcionando o
facho de luz à frente do grupo, também iluminando o chão, enquanto os demais
clareavam, ainda que parcamente, o teto e as paredes conforme avançavam.
Subitamente, Ana para de se mover,
segurando Bruno pelo braço.
- Vocês ouviram? - sussurrou Ana.
- Eu ouvi também! Pareceu uma respiração,
um grunhido. Ai gente, vamos voltar agora! – exclamou Taís
- Tatá – disse Pedro, puxando Taís
para perto de si, pelo braço – agora não é hora de perder a calma. Sim, eu
também ouvi. Seja lá o que for, está vivo e pode não gostar de barulho. Vamos
sair daqui sim, mas sem desespero. Se corrermos podemos cair nesses trilhos.
Bruno, Ana, vamos agora.
- Desliguem as luzes – ordenou
Pedro.
- Você tá louco? – espantou-se Ana –
Bruno, pelo amor de Deus, vamos embora daqui!
- Apaguem! – insistiu Bruno – as
luzes podem guiar o que quer que seja que fez esse barulho em nossa direção.
Desliguem as lanternas e vamos tentar caminhar de volta no escuro um pouco. E
em silêncio!
Todos obedeceram e, instintivamente,
colocaram-se um de costas pro outro, na tentativa de se protegerem de qualquer
coisa que os atacassem pelas costas. Em seguida, começaram a caminhar, ainda
naquela formação circular, na direção que acreditavam ser o retorno para a
entrada do túnel.
- Assim não vai dar certo, não vamos
avançar todos enroscados desse jeito. Vamos nos soltar, cada um pega a sua
lanterna. Ligamos todas ao mesmo tempo e corremos pela lateral dos trilhos,
assim evitamos os dormentes. Eu não sei o que foi aquilo e não quero saber o
que é. Vamos fazer como disse, ok? – murmurou Pedro, tentando não chamar a
atenção daquilo que nem ele sabia o que era.
Então, ao sinal de Pedro, os quatro
se afastaram um dos outros e procuraram suas lanternas.
Pedro ouviu, dessa vez muito
próximo, o mesmo barulho de minutos atrás. Era o som de uma respiração
ofegante, gutural, reconhecia como algo humano, embora também percebesse uma
espécie de líquido sendo aspirado e expirado, como saliva em grande quantidade.
Assim que ouviu o mesmo som que
Pedro, Taís sentiu o ar se movimentar ao seu lado, como se algo tivesse passado
voando bem perto da sua cabeça. Deu um grito, ao mesmo tempo que apontou a
lanterna do celular para a direção onde deveria estar Pedro.
- Pedro! Ah meu Deus! Gente, cadê o
Pedro!
Nervosa, ao tentar ligar a lanterna
do seu telefone, Ana deixou o aparelho escorregar de suas mãos e percebeu,
pelos ouvidos, que ele caiu numa poça d’água. Duas fontes de luz a menos.
Bruno apontou a lanterna para a
mesma direção em que Taís e teve uma visão que desejaria nunca ter tido.
Uma criatura humanoide, com mais de
dois metros de altura, de compleição física forte, estraçalhava com os dentes o
pescoço de Pedro, que jazia inerte nas mãos daquela figura monstruosa.
- Vamos embora daqui agora! Ana, me
dê sua mão! Taís, venha e não olhe para trás!
- Pedro!! Meu Deus do céu! Bruno!
Ana, o seu irmão! Precisamos salvá-lo!
- Não há mais o que fazer, Taís!
Temos que deixar o Pedro! Sim, ele é meu irmão, mas é tarde demais! Temos que
escapar agora antes que esse demônio venha atrás de gente! – gritou Ana,
puxando Taís pela manga da blusa.
- Agora não é hora de pensar em nada
a não ser sair daqui. Ana, por favor, me dê a sua mão, agora! Vamos! Taís,
Pedro morreu, você precisa correr!
O monstro soltou um urro apavorante
e voltou sua cabeça em direção ao trio. Ainda com a lanterna apontada na
direção da criatura, Bruno percebeu quando o facho de luz atingiu a besta nos
olhos e esta os protegeu com as mãos.
- Ele deve viver aqui nessa
escuridão há tanto tempo que está muito sensível à luz. Vocês duas vão seguindo
com a ajuda do celular e eu vou logo atrás, atrasando esse monstro com a
lanterna! Talvez assim ganhemos tempos até chegarmos a entrada do túnel. Vão!
Ana tomou o celular das mãos de Taís
e ambas saíram em disparada, tentando não tropeçar nos trilhos.
- Pela lateral! Corram pela lateral
do trilho para não pisarem nos dormentes!
A criatura parecia faminta, pois
mesmo irritada com a luz em seu rosto, continuava a arrancar pedaços do corpo
de Pedro.
Com o coração em disparada, a
adrenalina preenchendo suas veias, Bruno começou a correr logo atrás das
garotas, em dúvida se deveria olhar para trás e checar se o demônio já os
perseguia ou se olhava para o chão, a fim de evitar uma queda.
Subitamente, novo urro. Bruno sabia
que o monstro estava os perseguindo, conseguia sentir aquela respiração
pavorosa se cada vez mais perto, assim como as passadas cada vez mais
aceleradas sobre as pedras entre os dormentes.
- Não olhe para trás, Ana! Continuem
a correr, eu estou logo atrás de vocês!
Bruno sentiu aquela aberração muito
próxima, sabia que seria capturado. Então parou de correr se virou, apontando
mais uma vez o facho de luz para os olhos do monstro. Após levar as mãos
monstruosas em frente aos olhos, a criatura deu dois passos para trás e, na sequência,
ainda com as mãos no rosto, iniciou o que parecia ser uma corrida, mas que se
mostrou uma tomada de impulso, com o qual saltou sobre o biólogo.
Ana sentiu suas costas arderem e
logo em seguida não sentiu mais o chão sob seus pés.
Taís pensou ter visto a amiga
levitar, mas logo percebeu que o mostro havia pegado Ana pelo pescoço e a
levantava, deixando-a na horizontal e, num gesto muito rápido e cheio de fúria,
partiu a coluna da namorada de Bruno ao meio.
Em choque, só conseguiu se mover
quando Bruno, correndo, pegou em seu braço e a forçou a se mexer.
- Corre, Taís! Temos alguns minutos
enquanto ele se alimenta da Ana!
- Como você consegue ser tão frio,
meu Deus! É a sua namorada quem está ali!
Bruno parou bruscamente e, se
virando de frente para Taís, segurando-a pelos braços, disse num tom de voz
sussurrante, porém cheio de fúria e desespero:
- E você quer que eu faça o quê,
hein? Que eu volte lá e diga “seu monstro, essa é minha namorada, pode
larga-la?”. Por favor, Taís! Seja realista! Pedro e Ana estão mortos e nós
vamos estar também se continuarmos aqui! Se você quer ficar e fazer um velório
para eles, problema é seu. Só que eles já não vivem mais! Mas eu quero viver! E
se você quer também, tem que começar a correr agora, já!
Antes que Taís pudesse racionar
qualquer resposta, Bruno percebeu que o monstro descartava o corpo de Ana –
dessa vez levou menos tempo ocupado com o corpo do que ficou com Pedro – e
olhava em sua direção.
- Taís, corre! Se você quer viver,
corre!
Soltou os braços de Taís e saiu em
disparada, iluminando o caminho com a lanterna.
Bruno notou que os trilhos começavam
a fazer uma curva suave à esquerda. Imaginava se estaria se aproximando da
saída. Taís vinha logo atrás.
Ao concluir a curva, o choque. Uma rocha
bloqueava o caminho.
Sem saber se o monstro já os
alcançava, Bruno buscou com a luz do farolete uma passagem por debaixo da
rocha. Assim que Taís, ofegante e chorosa, parou ao seu lado, ele visualizou um
buraco. A tensão do momento não permitia avaliar de forma minuciosa se o vão
era suficiente para que passassem, um a um, rastejando. Tirou a mochila das
costas, deixando-a cair no chão.
- Bruno! É ele! Ele vai nos matar!
Meu Deus!
Imediatamente, Bruno se atirou ao
chão, encaixou a parte traseira da lanterna na boca e rastejou pelo vão debaixo
da rocha. Para sua surpresa, o espaço era suficiente para que passasse sem
dificuldades. Já do outro lado, Bruno virou de frente para o buraco, com a
lanterna na mão e gritou para que Taís passasse.
Por conta do desespero, da ânsia
pela fuga, Taís esqueceu de tirar a mochila das costas quando se jogou ao chão
e iniciou a passagem pelo buraco. Entalou. Não conseguia avançar nem
retroceder.
- Vamos, segure na minha mão!
- Eu não alcanço! Estou presa!
Bruno, me ajuda!
- Tente alcançar e minha mão que eu
puxo você!
- Não consigo! Meu Deus, me ajuda!
Bruno!
Ao se deitar no chão e apontar a
lanterna para onde estava Taís, viu a expressão de horror da garota, um misto
de medo, desespero e, logo em seguida, dor. A besta havia agarrado Tais,
puxando-a pelas pernas, dividindo o corpo já morto em dois.
Por um instante, apesar de todo o
horror que viveu nos últimos minutos, ou horas, não havia como saber, Bruno se
sentiu seguro. Embora não soubesse como sairia dali, tampouco se havia uma
saída, sentou-se e percebeu que aquela rocha era sua defesa, sua barreira
contra aquela criatura monstruosa, a respeito da qual ele não sabia o que
pensar.
Encostado na parede do túnel,
ofegante, com dores por todo o corpo, sedento, Bruno fechou os olhos, como uma
tentativa de resgatar um pouco de forças para tentar seguir adiante. Ouvia do
outro lado aquela respiração assustadora, a qual ele sabia que jamais o
deixaria em paz, escapando ele ou não daquele lugar.
Ao checar por passagens por baixo da
rocha que bloqueava o caminho, Bruno não percebeu que ela não alcançava o teto.
Foi por esse espaço que a besta venceu o bloqueio. Foi por esse espaço que a
fera saltou sobre o biólogo, pousando sobre seu abdômen.
Foi por esse espaço que o fim
chegou para Bruno.