Recentemente comecei um curso, com o objetivo de me ajudar a criar disciplina para escrever, assim como conhecer técnicas para criação de estórias. Logo na primeira aula fizemos um exercício onde deveríamos criar um enredo, seus personagens, o tempo da ação e o gênero da narrativa. Depois disso, como exercício para ser feito em casa, o professor nos pediu que criássemos uma cena baseada naquele roteiro, com aquelas informações, utilizando também outros recursos, como os "momentos de virada" - aquela momento em que acontece uma surpresa, algo que muda o rumo da estória. Era pra ser uma cena curta, que coubesse em uma página. A minha deu cinco. Consegui editar e deixar em duas páginas - menos do que isso ficaria sem sentido.
Aí eu resolvi publicar o texto maior aqui e vou fazê-lo sempre que eu produzir novos textos para a aula. Lá eu entrego de acordo com o que o professor pedir e aqui eu posto ele da forma como eu o concebi. Sendo assim, segue meu primeiro texto.
A HERANÇA
- Desconfiei mesmo que estaríamos
todos aqui. Junior, Tito, Catarina, Sandra... Bem dizem que pra reunir família
só com casamento ou velório.
- Bom dia para você também, Julinho.
– respondeu Sandra, a caçula dos herdeiros, sem olhar para o irmão.
Os cinco filhos de Adolfo Mendes
Tavares, convocados às pressas ante a notícia do falecimento do patriarca, se
reencontravam depois de vinte anos afastados, época em que perderam a mãe. Ainda
que os cinco herdeiros da família Mendes Tavares não se bicassem, tampouco
fizessem questão de ser uma irmandade, um pensamento era comum a todos: tinham
certeza de que a depressão e o câncer que ceifaram a vida de Dona Cecília
Mendes Tavares, com tanta agressividade e em tão pouco tempo, foram causados
pela infidelidade escancarada do marido. E agora estavam todos ali, reunidos
naquela mansão estranha, onde pisavam pela primeira vez, uma das inúmeras
propriedades adquiridas pelo pai ao longo dos anos de enriquecimento
vertiginoso, graças à descoberta de petróleo sob o solo de seu, até então,
único pedaço de chão.
- Mas e então – indagou Julinho –
alguém aqui sabe o que matou o velho? Será que foi remorso?
- Julio, não seja desrespeitoso! –
repreendeu Catarina, católica convertida à fé evangélica - Concordo que nosso
pai nunca foi santo e você sabe bem o que penso sobre a morte de mamãe, mas
ainda assim, ele agora não está mais entre nós e não nos cabe julgá-lo. Deus o
fará.
- Pronto! – resmungou Adolfo
Junior, o primogênito - Já vai começar a pregação. Quanto dessa herança vai virar
dízimo, hein Catarina?
- Sempre inconveniente, né Junior?
– disse Tito, o filho médico do qual Dona Cecília tanto se orgulhava. “Foi um
menino doente, fraquinho, mirrado e hoje é um doutor!”, dizia ela.
Subitamente, surge no cômodo um
homem que, assim como a mansão que agora os abrigava, era totalmente estranho
aos irmãos.
- Bom dia a todos. Meu nome é
Renato Lopes e sou o testamenteiro do Sr. Adolfo Mendes Tavares. Como já é de
vosso conhecimento, vocês foram trazidos aqui por serem os únicos herdeiros
vivos do Sr. Adolfo e, por consequência, beneficiários de todo o patrimônio
conquistado por ele ao longo dos anos.
- Com licença – interrompeu Sandra,
erguendo o braço direito – mas já estamos aqui há algum tempo e ainda não
sabemos o que vitimou nosso pai, não vimos o corpo, tampouco sabemos detalhes do
velório, enterro, ou cremação, sei lá. O senhor poderia fazer a gentileza de
nos esclarecer?
- Certamente, senhora. Mas para
isso eu vou chamar a pessoa mais indicada para prestar os esclarecimentos que buscam.
Com licença.
O testamenteiro retorna pela porta
por onde entrou, abre a segunda folha da mesma e libera a passagem para uma
cadeira de rodas, a qual é conduzida por um homem velho, com poucos fios
brancos sobre a cabeça, usando um pijama já puído, como se tivesse sido
emprestado de um hospital, contrastando com a decoração suntuosa do cômodo onde
estavam. Junto à cadeira, pende uma bolsa coletora de urina e, na parte
traseira, um tubo metálico, verde, que armazena o oxigênio que é conduzido até
as narinas daquela figura decrépita.
- Mas que palhaçada é essa! –
gritou Julinho, levantando-se subitamente da cadeira.
- Meu senhor Jesus Cristo! –
exclamou Catarina, levando às mãos à boca.
- Papai! – gritou Sandra – O Senhor
não morreu?
- Não, Sandra, eu ainda estou aqui.
- E será que o senhor poderia nos explicar
o que significa isso tudo? Papai. – rebateu ironicamente o filho Tito.
- Eu sabia que se dissesse a vocês
que estava à beira da morte e queria revê-los, nenhum de vocês viria me
visitar.
- É claro que eu viria! – disse o
primogênito.
- Fica quieto Junior, você seria o
primeiro a dar qualquer desculpa para não vir. Sempre bajulador, nunca faz nada
sem esperar uma recompensa, igual cachorro atrás de biscoito. E não me
interrompa mais!
Uma forte tosse acomete Adolfo,
sendo necessário alguns minutos para o patriarca se recompor.
- Pois bem, se me permitirem
explico o que realmente estão fazendo aqui. Como é visível, embora ainda não
tenha morrido, estou quase lá. Segundo meu médico eu posso durar tanto mais uns
meses como uma semana, ou ainda algumas horas. Como vocês também sabem, são
meus únicos herdeiros. Eu reconheço todas as coisas que fiz com a mãe de vocês,
mas se serve de consolo, eu nunca tive um bastardo. Isso nunca! Logo, toda a
minha fortuna é de vocês cinco. Eu até poderia doar tudo isso, já que vocês
viraram as costas para mim antes mesmo de eu descobrir o petróleo, mas eu
conheço um pouco da legislação e sei que nesse país, testamento não tem muito
valor se a intenção é deixar os filhos e a esposa sem nada. Até pensei em fazer
isso, só para terem o trabalho de procurarem advogado e esperarem anos pelo
julgamento. Mas aí pensei melhor e vou deixar tudo para vocês mesmo.
- Finalmente, não é senhor Adolfo,
bateu o remorso não só pelo que fez com a nossa mãe mas também da forma como
nos negligenciou a vida toda. E antes que venha dizer que “nunca faltou nada”
para gente, eu digo que faltou sim, muita coisa. Nunca tivemos um pai, apenas
um provedor – desabafou Julinho.
- Bom, Julio César, embora eu
reconheça que fiz muito mal a vocês no passado, eu não sinto remorso. Embora eu
tenha certeza que pensem que estou assim por uma espécie de castigo por tudo o
que fiz em vida, eu não acredito nisso. Ninguém é eterno nesse mundo, todos
morrem. A diferença é que uns morrem cedo, outros, tarde; uns morrem de
repente, outros padecem por muito tempo. Eu não estou com medo de morrer, pois
encaro a morte como a cura, o fim de todo sofrimento, limpeza, descanso, paz.
Meu maior medo era sofrer antes de morrer. Eis-me aqui nessa situação. Agora
não tenho medo de mais nada. Enfim, como eu estava dizendo, a razão para
trazê-los aqui é a seguinte: todos vocês terão direito à parte que lhes cabe da
minha fortuna, desde que – ao dizer isso, Adolfo levantou a mão direita com o
dedo indicador em riste – vocês permaneçam nesta casa, comigo, como meus
cuidadores, até meu último suspiro. Aquele que resolver ir embora
automaticamente abre mão da sua parte na herança. Sem telefone, sem computador.
O único contato que farão com o mundo exterior será para um membro da família,
explicando o motivo de não voltarem para casa e também para pedir a esse mesmo
membro que separe roupas e itens pessoais para serem trazidos para cá, os quais
serão retirados por algum funcionário meu.
- O senhor enlouqueceu de vez, só
pode. Senhor Renato, seja imparcial e como advogado nos diga se ele pode fazer
isso. É um absurdo! – esbravejou Tito.
- Sim, senhor Tito, ele pode. Como
o próprio senhor Adolfo disse, existem outros meios para que vocês reclamem a
herança, mas isso vai ficar ao encargo de cada um. Ainda que algum juiz decida
a seu favor, essa decisão pode demorar anos e isso vai lhe custar uma boa
quantia em honorários...
- A mim, pouco importa. – disse
Julio, levantando-se da cadeira e vestindo seu casaco – Eu vou embora, não vou
dar aplauso pra maluco. Nunca precisei do dinheiro desse petróleo para nada,
sou o que sou por meus próprios méritos, meu esforço e dedicação, dinheiro do
meu trabalho. Não vou abrir mão disso. Ainda que o senhor morra daqui cinco
minutos, mas e se durar mais um, dois meses? Eu não posso, não quero e não vou
ficar esse tempo todo longe da minha sala de aula, dos meus alunos, da minha
casa, muito menos dos meus cachorros. Francamente, nunca achei que fosse passar
por isso. Irmandade, tchau para quem fica. Dispenso os abraços de despedida
fajutos. Passem todos bem. – e assim, Julio virou as costas e saiu porta afora,
sem sequer esperar por alguma reação do pai ou dos demais presentes.
- Olhe, meu pai, ainda que o senhor
pedisse para que eu ajudasse como enfermeira, cuidadora, eu o faria. – Catarina
mostrava uma mistura de frustração e emoção no olhar. – Talvez seja o nosso
senhor Deus que esteja me colocando nessa provação, de cuidar do meu pai no fim
dos seus dias, mesmo nunca tendo sido cuidada pelo senhor. Mas eu vou assumir o
risco de ser punida pelo Pai Eterno e não vou compactuar com isso. De que
adiantou toda essa fortuna, todas essas posses, esses objetos? É essa a
história da qual o senhor se orgulha? Deixar o legado de uma família
destroçada, esfacelada? Nem com esse sofrimento todo o senhor aprendeu, meu
pai! E ainda quer fazer esse jogo doentio, mesquinho. O senhor está, no fim dos
seus dias, tentando comprar o amor e a atenção dos seus filhos. Acontece que
essas são coisas que não são compradas, mas cultivadas, estimuladas, ensinadas,
nós temos que dar primeiro para depois recebermos em troca. E isso, senhor
Adolfo Mendes Tavares, o senhor nunca foi capaz de fazer. Que Deus me perdoe ou
que me castigue da forma que Sua infinita sabedoria determinar, mas eu não
ficarei aqui. Que Ele tenha misericórdia da sua alma, pois só assim para que o
senhor tenha alguma paz. Meus irmãos, apesar dos pesares, fico feliz em
revê-los. Adeus a todos. Deus os abençoe.
- Querem saber? Julinho e Catarina tem
razão! – exclamou Tito ao se levantar, também ensaiando sua saída da mansão. -
Assim como ele, eu tenho a vida ganha. Ainda que eu nunca consiga chegar perto
de possuir uma fortuna como essa com o meu trabalho, o que eu ganho é mais do
que suficiente para eu dar uma vida confortável para a minha família, mas mais
do que isso, para eu ter a minha consciência tranquila, e isso não há preço,
dinheiro que pague! E digo mais, ninguém aqui está pensando em como gerir esse
patrimônio todo. Sim, acham que vai ser só receber e fica tudo lindo? Bem capaz
de torrarem tudo num piscar de olhos. Junior, Sandra, boa sorte para vocês. Só
preciso sair pela porta para declarar minha desistência dessa herança, não é?
Pois bem. Estou saindo por ela agora. Adeus.
Na sala restaram Adolfo, Sandra,
Junior e o testamenteiro. Após a saída abrupta e revoltosa dos três outros
herdeiros, que agora não mais o são, fez-se um momento de silêncio que só não
foi absoluto pela respiração ofegante do patriarca.
- Pois bem, meus filhos, Adolfo
Junior e Sandrinha, minha caçula. Confesso que eu imaginava essa reação dos
seus irmãos, quero dizer, Catarina me surpreendeu, pois como virou evangélica
fervorosa, com direito a saia jeans e cabelo batendo na bunda, imaginei que
fosse querer bancar a virtuosa, mas com o olho no dinheiro, como costuma ser em
muitas dessas igrejas. Mas vocês não. Afinal, Junior, para você vai ser a
glória, não é mesmo? Depois de uma vida incerta, sem uma profissão definida,
vivendo de rolos, até parar na cadeia você já foi, sujando meu nome, seu
infeliz...
- Como você sabe de tudo isso? Por
acaso mandou nos investigar? – disse Junior, num tom de voz que misturava
vergonha e revolta.
- Claro que sim. Acho que você faz
não ideia do quanto dinheiro eu possuo. Posso comprar e contratar quem ou o que
eu quiser. Eu queria saber não apenas se estavam vivos, mas o que andavam
fazendo da vida. Catarina me desapontou quanto virou crente. Não pela religião,
mas por que abandonou a psicologia para virar dona de casa e mulher de pastor.
Tito não me surpreendeu, sempre muito inteligente, mesmo tendo sido um moleque
frágil, vivia doente esse menino, mas acabou ficando forte e virou médico.
Nossa, como a mãe de vocês enchia a boca para falar do filho médico dela. Já
Julio César também me surpreendeu. Não que o achasse burro, nunca foi, mas com
essa história de ser maricas achei que iria parar na televisão, num salão de
beleza ou debaixo da terra por causa daquela doença lá. No fim, paguei minha
língua quando descobri que ele havia se tornado professor universitário, com
livro premiado e tudo.
- Credo papai, parece que o senhor
só os elogia pois foram embora. Coitado do Junior. – interveio Sandra em defesa
do irmão, para a surpresa do mesmo.
- Não diga bobagem Sandrinha. É a
verdade. E você, tão bela, minha caçulinha. Sabia que tem a cara da sua mãe? A
semelhança é incrível, passariam por gêmeas. Pena que só herdou a cara dela.
Casar por dinheiro, Sandra? Por que não fez como seus irmãos, tirando o Junior,
claro, e se tornou alguém na vida? Até Catarina se formou psicóloga. E você?
Foi se juntar com aquele carcamano! Bom, mas eu não estou aqui para julgar as
escolhas de vocês.
Tosse. Mais tosse. Sangue no lenço.
Tosse.
- Antes que eu morra de vez, vamos
resolver logo essa situação. Como seus irmãos foram embora feitos uns doidos,
não ouviram todas as condições. Embora eu tenha dito que só terá direito à
herança aqueles que ficarem ao meu lado até minha morte, caso apenas um de
vocês permaneça, automaticamente coloca as mãos e o nome na minha fortuna, não
precisa esperar eu morrer para garantir, apesar de que receber mesmo só vai
quando eu bater as botas.
Sandra e Junior trocam olhares
surpresos.
- Junior, eu sei que você não é fã
de qualquer tipo de trabalho, seja ele braçal ou mental. Sei também que você
adora uma farra e um rabo de saia, como seu velho pai aqui. Quantos filhos
mesmo? Cinco? Com três mulheres diferentes? Inclusive está com a pensão
atrasada, que eu sei. Já, já sai mais um mandado para te mandar para o
xilindró. Pois então, com o dinheiro que herdaria, você pode pagar a pensão
para esses cinco filhos e fazer mais uns dez. Mesmo que resolva gastar tudo na
farra, é mais provável que seu fígado acabe antes do que o dinheiro.
Por um momento Adolfo poderia jurar
que viu os olhos de Junior brilharem.
- Já você, Sandrinha, ainda que
tenha se casado com aquele cantineiro, o patrimônio dele está muito aquém do
meu, muito mesmo. Se você for a herdeira da minha fortuna, mesmo que divida a
metade com seu irmão, terá muito mais dinheiro que o carcamano. Nunca mais vai
precisar se deitar com aquele velho seboso. Uma moça tão linda feito você com
um homem asqueroso feito aquele... Eu sei que não estou em condições de julgar
a aparência de ninguém, mas mesmo assim. Pense, você poderá ter todos os homens
que quiser ao seu lado, poderá escolher, viajar o mundo, comer em qualquer
restaurante que quiser, pois eu sei que o velho do seu marido raramente leva
você jantar em outros restaurantes que não os dele. Além de tudo, veja que
Junior está correndo sério risco de ser preso. Se isso acontecer,
automaticamente ele perde o direito e tudo fica para você.
- Como assim, pai! O senhor disse
que perderia quem saísse daqui por vontade própria! – Junior parecia uma
criança manhosa ao dizer isso. – Agora, se eu for preso eu perco também?
Adolfo olhou para o testamenteiro,
que revirou os olhos.
- Sim, Junior. A intenção de tudo
isso aqui é ter pelo menos um dos meus filhos ao meu lado quando chegar a minha
morte. Pouco importa se você saiu daqui porque quis, se foi preso ou teve um
ataque do coração e morreu antes de mim. Só recebe minha herança que aqui
estiver quando eu finalmente descansar, a menos, é claro, que seja o último.
Nesse momento surge uma enfermeira
trazendo uma bandeja com um copo d’água e vários comprimidos.
- Senhor Adolfo, sua medicação. Aconselho
o senhor a encerrar o assunto por ora, pois precisamos trocar sua bolsa de
urina e também seria bom checar a bolsa de colostomia.
- Bom, vocês ouviram a moça. Está
na hora de decidirem o que farão com o futuro de vocês. Vão embora e retomam
suas vidas, ou colocam essas mesmas vidas em suspensão lá fora, para viverem
exclusivamente em minha função, até que eu durma em definitivo. Junior,
Sandrinha, afinal, como é que vai ser?
Um comentário:
Lindo texto e também reflexivo.Parabéns.
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