sábado, 20 de agosto de 2016

Texto 1 - A herança

Recentemente comecei um curso, com o objetivo de me ajudar a criar disciplina para escrever, assim como conhecer técnicas para criação de estórias. Logo na primeira aula fizemos um exercício onde deveríamos criar um enredo, seus personagens, o tempo da ação e o gênero da narrativa. Depois disso, como exercício para ser feito em casa, o professor nos pediu que criássemos uma cena baseada naquele roteiro, com aquelas informações, utilizando também outros recursos, como os "momentos de virada" - aquela momento em que acontece uma surpresa, algo que muda o rumo da estória. Era pra ser uma cena curta, que coubesse em uma página. A minha deu cinco. Consegui editar e deixar em duas páginas - menos do que isso ficaria sem sentido. 
Aí eu resolvi publicar o texto maior aqui e vou fazê-lo sempre que eu produzir novos textos para a aula. Lá eu entrego de acordo com o que o professor pedir e aqui eu posto ele da forma como eu o concebi. Sendo assim, segue meu primeiro texto.
A HERANÇA

- Desconfiei mesmo que estaríamos todos aqui. Junior, Tito, Catarina, Sandra... Bem dizem que pra reunir família só com casamento ou velório.
- Bom dia para você também, Julinho. – respondeu Sandra, a caçula dos herdeiros, sem olhar para o irmão.
Os cinco filhos de Adolfo Mendes Tavares, convocados às pressas ante a notícia do falecimento do patriarca, se reencontravam depois de vinte anos afastados, época em que perderam a mãe. Ainda que os cinco herdeiros da família Mendes Tavares não se bicassem, tampouco fizessem questão de ser uma irmandade, um pensamento era comum a todos: tinham certeza de que a depressão e o câncer que ceifaram a vida de Dona Cecília Mendes Tavares, com tanta agressividade e em tão pouco tempo, foram causados pela infidelidade escancarada do marido. E agora estavam todos ali, reunidos naquela mansão estranha, onde pisavam pela primeira vez, uma das inúmeras propriedades adquiridas pelo pai ao longo dos anos de enriquecimento vertiginoso, graças à descoberta de petróleo sob o solo de seu, até então, único pedaço de chão.
- Mas e então – indagou Julinho – alguém aqui sabe o que matou o velho? Será que foi remorso?
- Julio, não seja desrespeitoso! – repreendeu Catarina, católica convertida à fé evangélica - Concordo que nosso pai nunca foi santo e você sabe bem o que penso sobre a morte de mamãe, mas ainda assim, ele agora não está mais entre nós e não nos cabe julgá-lo. Deus o fará.
- Pronto! – resmungou Adolfo Junior, o primogênito - Já vai começar a pregação. Quanto dessa herança vai virar dízimo, hein Catarina?
- Sempre inconveniente, né Junior? – disse Tito, o filho médico do qual Dona Cecília tanto se orgulhava. “Foi um menino doente, fraquinho, mirrado e hoje é um doutor!”, dizia ela.
Subitamente, surge no cômodo um homem que, assim como a mansão que agora os abrigava, era totalmente estranho aos irmãos.
- Bom dia a todos. Meu nome é Renato Lopes e sou o testamenteiro do Sr. Adolfo Mendes Tavares. Como já é de vosso conhecimento, vocês foram trazidos aqui por serem os únicos herdeiros vivos do Sr. Adolfo e, por consequência, beneficiários de todo o patrimônio conquistado por ele ao longo dos anos.
- Com licença – interrompeu Sandra, erguendo o braço direito – mas já estamos aqui há algum tempo e ainda não sabemos o que vitimou nosso pai, não vimos o corpo, tampouco sabemos detalhes do velório, enterro, ou cremação, sei lá. O senhor poderia fazer a gentileza de nos esclarecer?
- Certamente, senhora. Mas para isso eu vou chamar a pessoa mais indicada para prestar os esclarecimentos que buscam. Com licença.
O testamenteiro retorna pela porta por onde entrou, abre a segunda folha da mesma e libera a passagem para uma cadeira de rodas, a qual é conduzida por um homem velho, com poucos fios brancos sobre a cabeça, usando um pijama já puído, como se tivesse sido emprestado de um hospital, contrastando com a decoração suntuosa do cômodo onde estavam. Junto à cadeira, pende uma bolsa coletora de urina e, na parte traseira, um tubo metálico, verde, que armazena o oxigênio que é conduzido até as narinas daquela figura decrépita.
- Mas que palhaçada é essa! – gritou Julinho, levantando-se subitamente da cadeira.
- Meu senhor Jesus Cristo! – exclamou Catarina, levando às mãos à boca.
- Papai! – gritou Sandra – O Senhor não morreu?
- Não, Sandra, eu ainda estou aqui.
- E será que o senhor poderia nos explicar o que significa isso tudo? Papai. – rebateu ironicamente o filho Tito.
- Eu sabia que se dissesse a vocês que estava à beira da morte e queria revê-los, nenhum de vocês viria me visitar.
- É claro que eu viria! – disse o primogênito.
- Fica quieto Junior, você seria o primeiro a dar qualquer desculpa para não vir. Sempre bajulador, nunca faz nada sem esperar uma recompensa, igual cachorro atrás de biscoito. E não me interrompa mais!
Uma forte tosse acomete Adolfo, sendo necessário alguns minutos para o patriarca se recompor.
- Pois bem, se me permitirem explico o que realmente estão fazendo aqui. Como é visível, embora ainda não tenha morrido, estou quase lá. Segundo meu médico eu posso durar tanto mais uns meses como uma semana, ou ainda algumas horas. Como vocês também sabem, são meus únicos herdeiros. Eu reconheço todas as coisas que fiz com a mãe de vocês, mas se serve de consolo, eu nunca tive um bastardo. Isso nunca! Logo, toda a minha fortuna é de vocês cinco. Eu até poderia doar tudo isso, já que vocês viraram as costas para mim antes mesmo de eu descobrir o petróleo, mas eu conheço um pouco da legislação e sei que nesse país, testamento não tem muito valor se a intenção é deixar os filhos e a esposa sem nada. Até pensei em fazer isso, só para terem o trabalho de procurarem advogado e esperarem anos pelo julgamento. Mas aí pensei melhor e vou deixar tudo para vocês mesmo.
- Finalmente, não é senhor Adolfo, bateu o remorso não só pelo que fez com a nossa mãe mas também da forma como nos negligenciou a vida toda. E antes que venha dizer que “nunca faltou nada” para gente, eu digo que faltou sim, muita coisa. Nunca tivemos um pai, apenas um provedor – desabafou Julinho.
- Bom, Julio César, embora eu reconheça que fiz muito mal a vocês no passado, eu não sinto remorso. Embora eu tenha certeza que pensem que estou assim por uma espécie de castigo por tudo o que fiz em vida, eu não acredito nisso. Ninguém é eterno nesse mundo, todos morrem. A diferença é que uns morrem cedo, outros, tarde; uns morrem de repente, outros padecem por muito tempo. Eu não estou com medo de morrer, pois encaro a morte como a cura, o fim de todo sofrimento, limpeza, descanso, paz. Meu maior medo era sofrer antes de morrer. Eis-me aqui nessa situação. Agora não tenho medo de mais nada. Enfim, como eu estava dizendo, a razão para trazê-los aqui é a seguinte: todos vocês terão direito à parte que lhes cabe da minha fortuna, desde que – ao dizer isso, Adolfo levantou a mão direita com o dedo indicador em riste – vocês permaneçam nesta casa, comigo, como meus cuidadores, até meu último suspiro. Aquele que resolver ir embora automaticamente abre mão da sua parte na herança. Sem telefone, sem computador. O único contato que farão com o mundo exterior será para um membro da família, explicando o motivo de não voltarem para casa e também para pedir a esse mesmo membro que separe roupas e itens pessoais para serem trazidos para cá, os quais serão retirados por algum funcionário meu.
- O senhor enlouqueceu de vez, só pode. Senhor Renato, seja imparcial e como advogado nos diga se ele pode fazer isso. É um absurdo! – esbravejou Tito.
- Sim, senhor Tito, ele pode. Como o próprio senhor Adolfo disse, existem outros meios para que vocês reclamem a herança, mas isso vai ficar ao encargo de cada um. Ainda que algum juiz decida a seu favor, essa decisão pode demorar anos e isso vai lhe custar uma boa quantia em honorários...
- A mim, pouco importa. – disse Julio, levantando-se da cadeira e vestindo seu casaco – Eu vou embora, não vou dar aplauso pra maluco. Nunca precisei do dinheiro desse petróleo para nada, sou o que sou por meus próprios méritos, meu esforço e dedicação, dinheiro do meu trabalho. Não vou abrir mão disso. Ainda que o senhor morra daqui cinco minutos, mas e se durar mais um, dois meses? Eu não posso, não quero e não vou ficar esse tempo todo longe da minha sala de aula, dos meus alunos, da minha casa, muito menos dos meus cachorros. Francamente, nunca achei que fosse passar por isso. Irmandade, tchau para quem fica. Dispenso os abraços de despedida fajutos. Passem todos bem. – e assim, Julio virou as costas e saiu porta afora, sem sequer esperar por alguma reação do pai ou dos demais presentes.
- Olhe, meu pai, ainda que o senhor pedisse para que eu ajudasse como enfermeira, cuidadora, eu o faria. – Catarina mostrava uma mistura de frustração e emoção no olhar. – Talvez seja o nosso senhor Deus que esteja me colocando nessa provação, de cuidar do meu pai no fim dos seus dias, mesmo nunca tendo sido cuidada pelo senhor. Mas eu vou assumir o risco de ser punida pelo Pai Eterno e não vou compactuar com isso. De que adiantou toda essa fortuna, todas essas posses, esses objetos? É essa a história da qual o senhor se orgulha? Deixar o legado de uma família destroçada, esfacelada? Nem com esse sofrimento todo o senhor aprendeu, meu pai! E ainda quer fazer esse jogo doentio, mesquinho. O senhor está, no fim dos seus dias, tentando comprar o amor e a atenção dos seus filhos. Acontece que essas são coisas que não são compradas, mas cultivadas, estimuladas, ensinadas, nós temos que dar primeiro para depois recebermos em troca. E isso, senhor Adolfo Mendes Tavares, o senhor nunca foi capaz de fazer. Que Deus me perdoe ou que me castigue da forma que Sua infinita sabedoria determinar, mas eu não ficarei aqui. Que Ele tenha misericórdia da sua alma, pois só assim para que o senhor tenha alguma paz. Meus irmãos, apesar dos pesares, fico feliz em revê-los. Adeus a todos. Deus os abençoe.
- Querem saber? Julinho e Catarina tem razão! – exclamou Tito ao se levantar, também ensaiando sua saída da mansão. - Assim como ele, eu tenho a vida ganha. Ainda que eu nunca consiga chegar perto de possuir uma fortuna como essa com o meu trabalho, o que eu ganho é mais do que suficiente para eu dar uma vida confortável para a minha família, mas mais do que isso, para eu ter a minha consciência tranquila, e isso não há preço, dinheiro que pague! E digo mais, ninguém aqui está pensando em como gerir esse patrimônio todo. Sim, acham que vai ser só receber e fica tudo lindo? Bem capaz de torrarem tudo num piscar de olhos. Junior, Sandra, boa sorte para vocês. Só preciso sair pela porta para declarar minha desistência dessa herança, não é? Pois bem. Estou saindo por ela agora. Adeus.
Na sala restaram Adolfo, Sandra, Junior e o testamenteiro. Após a saída abrupta e revoltosa dos três outros herdeiros, que agora não mais o são, fez-se um momento de silêncio que só não foi absoluto pela respiração ofegante do patriarca.
- Pois bem, meus filhos, Adolfo Junior e Sandrinha, minha caçula. Confesso que eu imaginava essa reação dos seus irmãos, quero dizer, Catarina me surpreendeu, pois como virou evangélica fervorosa, com direito a saia jeans e cabelo batendo na bunda, imaginei que fosse querer bancar a virtuosa, mas com o olho no dinheiro, como costuma ser em muitas dessas igrejas. Mas vocês não. Afinal, Junior, para você vai ser a glória, não é mesmo? Depois de uma vida incerta, sem uma profissão definida, vivendo de rolos, até parar na cadeia você já foi, sujando meu nome, seu infeliz...
- Como você sabe de tudo isso? Por acaso mandou nos investigar? – disse Junior, num tom de voz que misturava vergonha e revolta.
- Claro que sim. Acho que você faz não ideia do quanto dinheiro eu possuo. Posso comprar e contratar quem ou o que eu quiser. Eu queria saber não apenas se estavam vivos, mas o que andavam fazendo da vida. Catarina me desapontou quanto virou crente. Não pela religião, mas por que abandonou a psicologia para virar dona de casa e mulher de pastor. Tito não me surpreendeu, sempre muito inteligente, mesmo tendo sido um moleque frágil, vivia doente esse menino, mas acabou ficando forte e virou médico. Nossa, como a mãe de vocês enchia a boca para falar do filho médico dela. Já Julio César também me surpreendeu. Não que o achasse burro, nunca foi, mas com essa história de ser maricas achei que iria parar na televisão, num salão de beleza ou debaixo da terra por causa daquela doença lá. No fim, paguei minha língua quando descobri que ele havia se tornado professor universitário, com livro premiado e tudo.
- Credo papai, parece que o senhor só os elogia pois foram embora. Coitado do Junior. – interveio Sandra em defesa do irmão, para a surpresa do mesmo.
- Não diga bobagem Sandrinha. É a verdade. E você, tão bela, minha caçulinha. Sabia que tem a cara da sua mãe? A semelhança é incrível, passariam por gêmeas. Pena que só herdou a cara dela. Casar por dinheiro, Sandra? Por que não fez como seus irmãos, tirando o Junior, claro, e se tornou alguém na vida? Até Catarina se formou psicóloga. E você? Foi se juntar com aquele carcamano! Bom, mas eu não estou aqui para julgar as escolhas de vocês.
Tosse. Mais tosse. Sangue no lenço. Tosse.
- Antes que eu morra de vez, vamos resolver logo essa situação. Como seus irmãos foram embora feitos uns doidos, não ouviram todas as condições. Embora eu tenha dito que só terá direito à herança aqueles que ficarem ao meu lado até minha morte, caso apenas um de vocês permaneça, automaticamente coloca as mãos e o nome na minha fortuna, não precisa esperar eu morrer para garantir, apesar de que receber mesmo só vai quando eu bater as botas.
Sandra e Junior trocam olhares surpresos.
- Junior, eu sei que você não é fã de qualquer tipo de trabalho, seja ele braçal ou mental. Sei também que você adora uma farra e um rabo de saia, como seu velho pai aqui. Quantos filhos mesmo? Cinco? Com três mulheres diferentes? Inclusive está com a pensão atrasada, que eu sei. Já, já sai mais um mandado para te mandar para o xilindró. Pois então, com o dinheiro que herdaria, você pode pagar a pensão para esses cinco filhos e fazer mais uns dez. Mesmo que resolva gastar tudo na farra, é mais provável que seu fígado acabe antes do que o dinheiro.
Por um momento Adolfo poderia jurar que viu os olhos de Junior brilharem.
- Já você, Sandrinha, ainda que tenha se casado com aquele cantineiro, o patrimônio dele está muito aquém do meu, muito mesmo. Se você for a herdeira da minha fortuna, mesmo que divida a metade com seu irmão, terá muito mais dinheiro que o carcamano. Nunca mais vai precisar se deitar com aquele velho seboso. Uma moça tão linda feito você com um homem asqueroso feito aquele... Eu sei que não estou em condições de julgar a aparência de ninguém, mas mesmo assim. Pense, você poderá ter todos os homens que quiser ao seu lado, poderá escolher, viajar o mundo, comer em qualquer restaurante que quiser, pois eu sei que o velho do seu marido raramente leva você jantar em outros restaurantes que não os dele. Além de tudo, veja que Junior está correndo sério risco de ser preso. Se isso acontecer, automaticamente ele perde o direito e tudo fica para você.
- Como assim, pai! O senhor disse que perderia quem saísse daqui por vontade própria! – Junior parecia uma criança manhosa ao dizer isso. – Agora, se eu for preso eu perco também?
Adolfo olhou para o testamenteiro, que revirou os olhos.
- Sim, Junior. A intenção de tudo isso aqui é ter pelo menos um dos meus filhos ao meu lado quando chegar a minha morte. Pouco importa se você saiu daqui porque quis, se foi preso ou teve um ataque do coração e morreu antes de mim. Só recebe minha herança que aqui estiver quando eu finalmente descansar, a menos, é claro, que seja o último.
Nesse momento surge uma enfermeira trazendo uma bandeja com um copo d’água e vários comprimidos.
- Senhor Adolfo, sua medicação. Aconselho o senhor a encerrar o assunto por ora, pois precisamos trocar sua bolsa de urina e também seria bom checar a bolsa de colostomia.
- Bom, vocês ouviram a moça. Está na hora de decidirem o que farão com o futuro de vocês. Vão embora e retomam suas vidas, ou colocam essas mesmas vidas em suspensão lá fora, para viverem exclusivamente em minha função, até que eu durma em definitivo. Junior, Sandrinha, afinal, como é que vai ser?





Um comentário:

Professora Iolanda disse...

Lindo texto e também reflexivo.Parabéns.