Nesse o exercício consistia numa situação banal e um diálogo incomum.
(Restaurante refinado,
percebe-se pela decoração, pelas roupas dos clientes – apenas adultos, alguns
idosos - pelos uniformes dos garçons e pela quantidade de copos e talheres nas
mesas, que se trata de um local frequentado por pessoas de alto poder
aquisitivo. Ao fundo, quase imperceptível, o som de um violino preenche o
ambiente, trazendo ainda mais requinte ao jantar. Assim que Abigail e Aníbal
entram no restaurante, atraem todos os olhares. Ela, impecável num vestido
vermelho, cabelos presos em coque, uma estola sobre os ombros, e ele igualmente
elegante num terno feito sob medida, o cabelo meticulosamente penteado e os
dentes impecavelmente brancos. Sentam-se numa mesa no centro do salão, um de
frente para o outro. A hostess se oferece para guardar a estola de Abigail
enquanto o garçom entrega os cardápios e a carta de vinhos. Aníbal dispensa os
papeis com um simples gesto da mão. O garçom se retira, com ar confuso).
ABIGAIL – Você deve mesmo
ser muito bem relacionado. Trazer o seu próprio jantar para ser servido aqui.
Os pratos daqui são famosíssimos, tem até lista de espera, mas você os despreza
para servir os seus.
ANÍBAL – Primeira
correção: não são meus, são nossos. Aliás, seus, afinal você os preparou.
Segunda correção: não estou desprezando a comida daqui, apenas prefiro a sua,
nessa ocasião. É um jantar especial, não acha?
ABIGAIL, sorrindo de
forma sedutora: - Especial? É, pode ser. Afinal é o nosso primeiro jantar
depois que você me deixou agir sozinha; mais importante ainda, o primeiro
jantar que eu preparo para você.
ANÍBAL – Justamente. Por
isso não poderia servi-lo na sua ou na minha cozinha.
ABIGAIL – Mas sua cozinha
é impecável!
ANÍBAL – Obrigado, mas lá
não teríamos o que temos ao redor. Essas pessoas que aqui estão irão para as
suas casas depois do jantar sem imaginar o que foi servido para nós. Se
soubessem, provavelmente surtariam.
ABIGAIL – Vendo por esse
lado, realmente vai ser algo bem especial.
(Um garçom se aproxima e
serve vinho para ambos)
ABIGAIL – Esse é de sua
adega, presumo.
ANÍBAL – Sim, claro. Meu
amigo Frank, o dono do restaurante, ficou mais ofendido por eu ter trazido o
vinho do que a comida – sorri – mas como disse, é uma noite especial.
ABIGAIL, levantando a
taça – Brindemos, então. Saúde!
ANÍBAL – Saúde!
(Ambos bebem um gole,
degustando. Abigail abre os olhos numa expressão de prazer)
ABIGAIL – Meu Deus,
Aníbal! Se eu soubesse que iria beber um vinho desse, teria me apressado em preparar esse jantar!
ANÍBAL – De forma alguma,
tudo ao seu tempo. Eu espero, inclusive, que a comida faça jus ao meu vinho.
ABIGAIL perde o sorriso e
deixa a taça sobre a mesa: - Por favor, você não deve esperar pratos tão
saborosos quanto os que você prepara, Aníbal. Eu preciso que seja compreensivo.
Foi a minha primeira vez sozinha. Creio que fui uma boa aluna, mas só com a
prática se chega à perfeição.
ANÍBAL, deixando a taça
sobre a mesa e tocando a mão de Abigail com a ponta dos seus dedos: - A
perfeição não existe, por isso nós, os perfeccionistas, nunca a atingimos. Vou
levar em consideração que é a sua primeira vez. Mas me conte sobre os
ingredientes, antes de pedirmos para que nos sirvam. Quantos foram?
ABIGAIL – Dois. Embora
apenas um seja suficiente para a maioria dos pratos que você me sugeriu, eu
escolhi como principal logo aquele que usa baço. Aí apenas um não seria
suficiente, eu precisava de dois.
ANÍBAL – Entendo. Imagino
que tenha guardado o que não usou de forma correta, não?
ABIGAIL – Sim, claro. Eu
sabia que muita coisa iria sobrar, especialmente os intestinos. Se eu precisar
de uma nota de recuperação, tenho certeza que o acondicionamento dos excessos
vai me fazer passar de ano.
ANÍBAL – Não tenha medo,
não vou reprová-la, apenas umas aulas de reforço, se julgar necessário – Aníbal
pisca para Abigail. Mas me conte mais. Como foi o abate?
ABIGAIL – Sabe o que
nivela todas as pessoas? O ego. Basta você se insinuar, demonstrar que está
atraída, com tesão, que ninguém resiste. Todo mundo quer se sentir desejado.
Não foi diferente com Tomas e Tarsila.
ANÍBAL – Irmãos?
ABIGAIL – Não, apenas
coincidência. Tomas foi fácil. Homens. Bastou uma volta no Vila Dionísio e
pronto. Menos de duas horas depois lá estava ele me seguindo. Foi tão simples
que nem teve tanta graça. Sorte a dele que nem teve tempo de ver a faca se
aproximando. Acho que por isso, também, não usei quase nada além do baço. Foi
muito fácil para usá-lo no menu de hoje. O freezer ficou quase todo cheio só
com Tomas.
ANÍBAL – E você guardou
tudo?
ABIGAL – Sim, guardei.
Ainda que você não goste do que preparei, eu vou ter que jantar e almoçar
outras vezes.
ANÍBAL – Depois falamos
sobre isso. Aliás, eu preciso ir até sua casa e ver em que condições você o
armazenou. Eu sei que lhe ensinei à exaustão, mas nunca com dois corpos de uma
vez. E ao menos que tenha preparado comida para toda a clientela desse
restaurante, hoje, você também não usou Tarsila por completa. Usou?
ABIGAIL – Não, não usei.
Só que enquanto eu consegui Tomas anteontem, Tarsila eu consegui dois dias
antes dele.
ANÍBAL – E você precisou
almoçar e jantar de lá para cá...
ABIGAIL – Exato.
ANÍBAL – Gostaria que
você tivesse me dito isso antes, que tinha a intenção de usar dois de uma vez
só. Você conseguiu Tarsila faz quatro dias. Muito tempo para um baço ficar
congelado.
ABIGAIL – Poxa, mas você
sempre congela tudo, tem uma câmara fria enorme!
ANÍBAL – Sim, tenho, mas
nem todas partes podem ficar congeladas por muito tempo. Quero dizer, podem,
não apodrecem, mas isso altera o sabor, a consistência deixa de ser a ideal.
Nunca lhe expliquei isso pois realmente não imaginei que pegaria dois de uma só
vez. Subestimei você. Mas você disse que conseguiu ambos pelo desejo, pelo
tesão. Como foi com Tarsila? Você é bissexual?
ABIGAIL – Claro que não.
Eu nunca tive a intenção de foder com ela, Tomas eu confesso que até
considerei, mas isso não me impediu de flertar com a moça. Tarsila eu encontrei
numa sala de bate papo. É incrível como essas pessoas ainda se escondem nas sombras,
coitadas. Enfim, conversamos, trocamos Skype, a convidei para o sítio, ela
topou. Doida. Devia estar desesperada para aceitar ir para o meio do mato
assim, com uma estranha.
ANÍBAL – Mas você é
encantadora. Você mesma disse que basta mostrar interesse nas pessoas que elas
sucumbem. Linda assim, qualquer um vai para o meio do mato com você.
ABIGAIL – Obrigada.
Sempre um galanteador. Só que ela me deu mais trabalho. Não bebe – ou melhor,
não bebia. Esse povo todo natureba, vegano, essas coisas. E isso foi falha
minha, pois eu deveria ter perguntado antes. Sem beber ficou difícil eu
dominá-la.
ANÍBAL – E como
conseguiu?
ABIGAIL – Bom, como você
disse que estressar a pessoa antes da morte pode por tudo a perder, por conta
das substâncias que o corpo libera nesses momentos de medo e pavor, tive que
apelar para o bom e velho atiçador de lareira. É, eu sei, faz sujeira e o
cérebro fica comprometido para consumo, dependendo da força que se aplica. Só
que eu não aguentava mais aquela baboseira de natureza, animaizinhos,
Greenpeace. Uni o útil ao agradável e acabei logo com o meu martírio. Fiz que
ia ao banheiro e ela nem viu a pancada.
ANÍBAL – Estou começando
a achar que liberei você cedo demais. Falha minha. Eu tinha que ter antevisto
essas coisas. Foquei em lhe ensinar como retirar, preparar e preservar os
órgãos e me esqueci que antes disso tudo teria que se ocupar dos corpos.
ABIGAIL – Então façamos
assim. Hoje você avalia meu talento como colhedora, armazenadora e cozinheira.
Depois começamos um novo módulo e você me ensina como ser uma boa caçadora e
abatedora. Que tal? – Abigail levanta a taça, propondo um brinde.
ANÍBAL, levanta a taça,
respondendo ao brinde: - Combinado, que assim seja. Pedimos para que o garçom
nos sirva, então?
ABIGAIL – Por favor! Certamente
seu amigo Frank já teve tempo o suficiente para preparar todos os pratos. Só
espero que ele tenha seguido minhas instruções corretamente. Vamos comer! Mais
do que estar com fome eu estou curiosa para saber a sua opinião.
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