O exercício consistia em criar uma cena onde o diálogo fosse banal e a situação inusitada, incomum, surpreendente.
(Sala de um necrotério,
as paredes da direita e do centro tomadas por gavetas refrigeradas onde ficam
os corpos; na da esquerda a porta de acesso, duas pias, um armário tipo
fichário, e outro maior, utilizado para guardar os pertences pessoais das funcionárias
e demais objetos. No meio da sala, duas mesas metálicas que são utilizadas para
a preparação dos corpos, antes de serem levados ao velório. Duas mulheres na
sala. Jurema, a mais velha, mais de cinquenta anos, está em pé ao lado de uma
das mesas, preparando um corpo, passando uma esponja sobre o mesmo, como quando
se banha uma pessoa acamada – a outra mesa está vazia – enquanto Paloma, jovem
de vinte e seis anos, perambula pela sala, levando e trazendo utensílios usados
por Jurema. Como numa cirurgia, a média e a assistente).
JUREMA, com a voz um
pouco abafada por causa da máscara frente à boca: - Ela está grávida, eu tenho
certeza!
PALOMA – Mas só porque
ela engordou?
JUREMA – Ah, mulher sabe
dessas coisas, ainda mais sendo minha filha! Gislaine tá ganhando peito, bunda,
muito rápido! Tenho certeza que a danada fez besteira. Me ajuda aqui, segura
essa perna.
PALOMA, colocando a
máscara sobre a boca e segurando a perna direita do morto, quase num ângulo de
noventa graus: - E o que ela disse quando você perguntou para ela? Negou?
JUREMA – Pior que eu
ainda não perguntei...
PALOMA – Como não? Ai se
eu desconfio que uma filha minha de quinze anos aprontou uma dessas eu não deixaria
quieto...
JUREMA – Que filha,
garota? Você não tem idade para ser mãe da Gislaine, não.
PALOMA – Você entendeu o
que eu quis dizer, né Jurema? Posso baixar a perna?
JUREMA – Pode. Agora
levanta a outra. O problema é que eu não sei como puxar esse assunto com ela
sem o pai dela perceber. Se for mesmo verdade eu não quero nem ver o que o
Gilberto vai fazer com essa menina...
PALOMA, segurando a perna
esquerda na mesma posição da outra:
- Só que se for mesmo
gravidez, não vai demorar muito tempo para ele perceber também né?
JUREMA para de passar a
esponja e apoia as duas mãos na mesa, cabeça baixa:
- É, eu sei. Ai menina,
estou num mato sem cachorro. E para ajudar tenho esse emprego com esses
horários malucos. Isso era hora de uma mãe de família estar trabalhando? Desce
a perna.
PALOMA, repousando a
perna cuidadosamente sobre a mesa:
- Por isso eu acho que
vou ficar para tia. Que homem vai querer namorar uma mulher que mexe com
defunto, de madrugada? Passando a mão em gente pelada?
JUREMA, indo em direção à
pia, retirando as luvas e a máscara da boca:
- Que jeito de falar,
menina! “Passando a mão em gente pelada”. Quem ouve vai pensar que em vez de um
necrotério isso aqui é a zona.
PALOMA, igualmente
tirando as luvas e a máscara:
- Ai, tá bom, desculpe.
Esqueço que você é toda séria.
JUREMA, sem se virar,
ainda com a atenção na pia, lavando objetos:
- Não é uma questão de
ser séria, mas de se dar ao respeito.
PALOMA – Ok, já entendi.
Mas estamos só nós duas aqui, vai. E não deixa de ser verdade o que eu disse.
Se bem que, no caso desse presunto aí, eu preferiria era passar a mão nele
ainda vivo. Baita homem desse. Que desperdício...
JUREMA se vira
bruscamente e levanta a voz: - Olha o respeito, menina! Que coisa mais
horrível, falar assim de um falecido. Ele pode estar morto, mas certamente
existem pessoas que estão sofrendo pela perda dele. Se não consegue respeitar o
finado, ao menos tenha respeito pela família dele!
PALOMA – Nossa, Jurema.
Que exagero. Já disse, só estamos nós duas aqui. Essa bronca eu mereceria se
dissesse isso na frente de algum desses familiares, amigos, sei lá. Como você
conseguiu ficar tantos anos nesse emprego, se importando tanto assim? Você leva
para casa o sofrimento alheio, de pessoas que você nem sabe quem são?
JUREMA, abrindo o armário
e retirando de dentro dele um terno, uma camisa, uma gravata, uma cueca, um par
de meias e um par de sapatos, colocando-os na mesa vazia:
– Eu não levo nada para casa, apenas acho
desnecessário e desrespeitoso esse comportamento. Ainda que ele tenha sido um
bandido, uma pessoa horrível em vida, não tenha família ou amigos para chorar a
sua morte. Agora é entre ele e Deus. Nosso papel aqui e tratar o corpo dele com
respeito e dar a ele um fim digno, independente do que ou quem ele tenha sido
antes de chegar aqui. Se você quer manter esse emprego, melhor repensar suas
atitudes e, principalmente, suas palavras.
PALOMA - Tudo bem, embora
não concorde com você, pois eu acho que depois que morre o ser humano vira
apenas matéria orgânica, comida de verme, ou do fogo que seja, me policiarei
para não fazer mais comentários como esses perto de você. Já com relação ao
emprego, agora eu preciso dele, mas garanto que não quero passar o resto da
minha vida aqui.
JUREMA, desdobrando
cuidadosamente as peças de roupa – Pois que assim seja. Enquanto eu for a
responsável aqui, prefiro mesmo que se comporte da forma que eu acho correta.
Quando eu não estiver mais aqui, ou quando você ganhar as contas, faça como
quiser. Pouco me importa. Agora, coloque suas luvas e me ajude aqui.
PALOMA – Cueca? Para que
cueca no corpo, se ele vai estar vestido?
JUREMA, colocando a
máscara sobre a boca: - Não faça perguntas, apenas faça o que eu peço, sim?
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