Esse texto saiu de um exercício de "texto dramático", onde não há a presença do narrador, apenas diálogos.
- Sente-se.
- Nossa, que séria.
- Pois é, a conversa vai
ser séria mesmo. E eu vou ser direta. Eu sei por que você está fazendo tanta
questão de reunir as duas famílias no natal, esse ano.
- Você fala de um jeito
que parece até crime. Qual o problema em finalmente reunir nossas famílias na
mesma festa?
- Ué, de repente teve
amnésia? Já faz seis anos que nós alternamos as festas pois nem a sua, nem a
minha família quer passar a noite de natal como convidados. Meus pais gostam de
reunir os filhos e os netos na casa deles. Fazem muito de não implicarem comigo
quando eu passo com a sua família, que não quer passar com a minha pelo mesmo
motivo. Ah, Leonardo, sério mesmo que eu preciso explicar isso? Não, né? Que
coisa.
- Sim, claro que eu sei,
mas não custa tentar reunir todo mundo, eu acho. Vai ser a vida inteira assim?
Ou lá ou cá? Mesmo quando a gente se casar? E quando vierem nossos filhos,
vamos fazer como, cortar ao meio e dar metade para cada avó? Já sei, vamos
torcer para virem gêmeos, assim a gente deixa um em cada casa. “Que coisa” digo
eu, agora.
- Era justamente sobre
isso que eu queria falar. Como eu disse, eu sei o porquê de você querer tanto
essa festa com as duas famílias. Você vai me pedir em casamento durante a ceia,
não vai?
- O quê?
- Não adianta, Leo.
Larissa me contou tudo.
- Aquela vaca,
linguaruda!
- Não fale assim da sua
irmã. Não seja ridículo. Ela fez foi muito bem em me contar. Claro que ela
pediu para que eu não a entregasse, prevendo essa sua reação patética, mas eu
contei e você nem invente de pegar no pé dela. O problema agora é só entre nós.
- Problema, Bianca? Eu
pedir você em casamento é um problema?
- Sim, dessa forma é.
- Que forma?
- Ou você é muito cínico
ou muito egocêntrico.
- Ei! Que agressividade é
essa?
- Ah, Leonardo, por
favor! Você acha mesmo que não há problema algum em me colocar numa situação
dessa? Aliás... Estou começando a achar que teve essa ideia justamente para me
colocar numa posição difícil diante da minha e da sua família.
- Do que você está
falando? Ficou maluca?
- Estou falando de você
ter pensado em me pedir em casamento justo na noite de natal, com ambas
famílias reunidas, pais, mães, irmãos, sobrinhos, todos, só para me colocar
numa saia justa e eu me sentir coagida a aceitar. Claro! Imagino a avozinha toda
comovida com você de joelhos me pedindo em casamento e eu recusando! Certamente
eu ficaria como a bruxa da história. Você fez de caso pensado. Seu tratante.
- Meu Deus, Bianca! Que
raiva toda é essa? E, espere um pouco, você recusaria? Ou melhor, vai recusar?
- Claro que sim!
- Mas por quê?! Não
entendo! A gente se ama, estamos juntos há mais de cinco anos, nunca tivemos
problema algum, sempre foi um namoro gostoso, inclusive nossos amigos sempre
dizem que queriam ter uma relação sólida como a nossa! E agora vem você com
essa. Assim, do nada!
- Não é do nada, não.
Acontece que você alimenta essa ideia de casamento desde sei lá quando, talvez
antes mesmo de me conhecer. Alguma vez você me perguntou o que eu pensava sobre
isso?
- E precisava perguntar?
Realmente, você nunca falou sobre casamento, mas também nunca se mostrou
contra! E agora que eu também terminei a faculdade, é o próximo passo. Não?
- Aí é que está. Não é.
- Ah não?!
- Leo, me ouve. Tenho
para mim que você alimenta essa vontade desde que se entendeu por homem, que
percebeu o que é um relacionamento entre um casal. Provavelmente pela
trajetória dos seus pais e até mesmo dos seus irmãos, você sempre quis o mesmo.
Na sua cabeça existe uma ordem natural das coisas. Perde a virgindade. Formatura.
Viagem para Porto Seguro. Faculdade. Cursa o que os pais escolheram ou segue a
carreira do pai – o seu caso. Namora. Formatura. Assume o negócio da família.
Noivado. Casa. Carro. Casamento. Gravidez. Enxoval em Miami. Filho. Casa na
praia. Outro filho. Disney. Carro maior. Talvez um terceiro bebê. Comprar moto
gigante para dar a volta no quarteirão no fim de semana. Talvez uma variação
aqui ou ali, mas basicamente é esse o roteiro que você considera como o ideal
para se sentir e, mais importante, se mostrar bem-sucedido para a sociedade. E
aí, eu como a namorada, sou inserida nesse contexto, sem ao menos ser
questionada. Você presumiu que eu tinha a mesma visão e pronto.
- Credo, Bianca. Eu acho
que você deu uma exagerada. Eu pensei em fazer dessa forma por achar que iria
ser romântico. Ok, você tem razão, eu nunca perguntei a você. Se bem que se
perguntasse antes toda a magia do momento iria se perder.
- Pois então. Esse é o
problema. Se tivesse perguntado, iria saber que eu não sou contra o casamento. Entretanto,
eu acho que uma decisão dessa importância deve ser tomada em conjunto, não
imposta. Tudo bem, existem pessoas por aí que matariam por uma situação como
essa, serem pedidas em casamento como num conto de fadas. Só que eu nunca fui
uma dessas pessoas. Aliás muito me espanta você não ter percebido isso.
- Pelo visto eu conheço
menos você do que eu imaginava. Parece até outra pessoa. Engraçado que até
então você nunca havia mostrado essa sua repulsa com relação ao romantismo.
- Você entendeu muito bem
o que eu quis dizer, mas é claro que iria se portar dessa forma. Vai distorcer
tudo o que eu disse e eu vou ficar como a vilã da história. Eu jamais fui
contra o romantismo. Nosso namoro funcionou até aqui pois, mesmo eu sabendo
desses seus planos de casamento, família, você nunca me pressionou. E eu gosto
de você. O problema aqui é um só. É você ter decidido que o momento de ficarmos
noivos é agora, sem saber o que eu penso, o que eu quero. É uma atitude egoísta
e até mesmo ardilosa, me colocando numa sinuca de bico diante de todo mundo.
Ainda bem que a Larissa se colocou no meu lugar e me avisou.
- E viva o Clube da
Luluzinha!
- Ah, Leonardo, não seja
cretino, por favor. Na verdade, a sua irmã fez um favor a você também. Sim,
pois você estava tão certo de que eu iria aceitar seu pedido que nem cogitou
como seria se eu dissesse não. Não foi? No constrangimento que seria para você,
também, ter seu pedido recusado na frente de todos. Já imaginou a cara do seu
pai? Pois então. Você tem mais é que agradecer à sua irmã.
- Tá, Bianca. E agora,
como vai ser?
- Bom, embora você não
tenha perguntado, assim como você eu também sempre tive meus planos pós
formatura. Porém, eles são bem diferentes dos seus.
- E eu posso saber sobre
eles? Aliás, você se formou há seis meses. Por que até agora não ouvi nada a
respeito? Taí mais um motivo para achar que você queria a mesma coisa que eu.
- Eu não disse nada antes
pois eu queria mesmo esperar até a sua formatura. Eu sabia que se dissesse algo
antes você poderia até mesmo ter dificuldade em terminar sua monografia. Sei
bem o quão difícil é o último semestre.
- Nossa. Que mistério.
Confesso que estou ficando assustado com esses seus tais planos. Nem sei mais
se quero saber quais são.
- Não há nada de
assustador neles. Desde o segundo semestre eu comecei a juntar o dinheiro que
seria para a formatura para poder usá-lo agora, depois de formada.
- Como assim? E a sua
festa de formatura, quem pagou?
- Meu pai. Por mim eu nem
participaria, no máximo como convidada de um dos meus amigos da sala. Só que
quando eu disse ao meu pai ele fez questão de bancar, pois ele queria a festa.
Única filha, valsa, colação de grau, roupas de gala, enfim, você conhece o
velho.
- Então você aceitou o
dinheiro dele. Quem diria.
- Acabei de explicar. Ele
queria a festa. Foi mais por ele do que por mim. E qual o problema? Sim, eu
sempre fiz o possível para me manter sem precisar dele e justamente por isso
tive que escolher não participar da formatura, se quisesse ter dinheiro para o
que pretendo fazer agora. Ele se ofereceu, eu aceitei. E fiz muito bem, pois a
festa foi maravilhosa. Bom, você viu né, afinal estava lá.
- Tá, tá. Mas afinal, o
que tanto você pretende fazer? Ainda não me disse.
- Eu pretendo, quero
dizer, eu vou fazer uma viagem pelo Brasil. Especialmente pelo Nordeste. Se bem
que com a grana que eu guardei, eu vou conseguir conhecer outras regiões e quem
sabe até algum país vizinho. Quero ficar pelo menos uns três meses na estrada.
- Mas viajar, agora? Vai
ser difícil para mim. Papai está doido para passar a empresa para eu comandar,
não via a hora da minha formatura para se aposentar. Se eu disser a ele que vou
fazer uma viagem, ainda mais de três meses, acho que ele surta. E outra coisa.
Nordeste? Com esse dinheiro dá para conhecer vários países da Europa.
- Pronto. Lá vem. Além de
todos os clichês, mais esse. Por que só Europa presta e seu próprio país não?
Por que esse tom de desprezo quando disse “Nordeste”?
- Ah Bianca, não vai
querer dizer agora que a Europa é feia e não vale a viagem?
- Eu jamais disse e
jamais direi isso. Eu sonho em conhecer muitos lugares da Europa. E irei
conhece-los. O que me incomoda é esse pensamento de que viajar pelo próprio
país “não dá status”, por isso não vale nada. E antes de viajar para o exterior
eu acho no mínimo mais sensato viajar pelo meu próprio país. Não me vejo indo
para, sei lá, Grécia sem antes ter conhecido as praias nordestinas. O Brasil é
tão vasto, tão diverso, com tantos atrativos, que não dá para não querer
conhecer tudo. Mas... agora me dei conta. Como assim “vai ser difícil” para
você? Acha que vamos juntos?
- Ué, não vamos? Como
assim?! Você pensou em viajar sem mim? Com quem você vai viajar? Só falta me
dizer que com a Larissa!
- Não, não é com ela. Nem
com você. Eu vou sozinha.
- Sozinha?
- É, sozinha. Mesmo antes
de saber dessa maluquice de pedido de casamento eu já havia decidido. Eu vou
viajar sozinha.
- Mas Bianca, meu Deus!
Então além de recusar meu pedido de casamento, vai terminar nosso namoro?!
Então por que ficou comigo esse tempo todo? Fui um idiota útil?
- Não é nada disso, Leo.
Eu gosto de você. Nosso namoro foi muito bom, fiquei com você por gostar de
você, da gente juntos. E foi dando certo durante a faculdade pois nossas
cabeças estavam focadas no mesmo objetivo, o fim do curso. Só que eu sabia que
era só uma questão de tempo. Eu sabia que você não aceitaria fazer uma viagem
desse tipo comigo. Eu sabia que você iria começar a pensar em casamento. Só que
foi mais rápido do que eu imaginei. A minha intenção era conversar com você,
depois dessa bagunça toda de fim de ano. Uma conversa só nossa, adulta. Mas aí
você resolveu atropelar tudo que não teve outro jeito.
- Olha, eu confesso que
nem sei mais o que dizer. Já vi que está decidida. Existe alguma coisa que eu
possa fazer para que você mude de ideia?
- Não, Leo. Não existe.
- Sendo assim, melhor eu
ir embora. Nem quero ver quando contar para meus pais. Eles adoram você.
- Sim, eu sei e também
gosto muito deles. Gosto de toda a sua família, sempre me acolheram muito bem.
E Leo, por favor, não vá infernizar a vida da Larissa, ok? Ela não fez por mal.
Pelo contrário, fez pelo nosso bem.
- Que seja. Bom, se mudar
de ideia, sei lá, sabe onde me encontrar.
- Sim, eu sei. Mas a
gente não precisa se afastar por causa disso. Podemos continuar...
- Bianca, por favor, não.
Não me peça isso. Uma coisa é eu ter que respeitar sua decisão, por mais
absurda que eu a considere. Mas não pense que vamos virar melhores amigos. Para
mim não vai ser simples assim. São mais de cinco anos juntos. Cinco anos de
convivência, de amor, de carinho, de intimidade, de confiança e confidências.
Cinco anos de planos, ainda que só da minha parte. Não dá para transformar tudo
isso em passado assim, de uma hora para outra. Preciso de um tempo. Faça uma
boa viagem. Espero que nada de ruim aconteça com você nessa sua aventura
maluca. Viajar sozinha... E vamos deixar o tempo passar. Como diz a vó, “o
futuro a Deus pertence”.
- Sim... Bom, então acho
que é isso, não?
- É. Pelo menos por
agora, é isso.
- Tudo bem então. Mande
lembranças à sua família. Gostaria de poder me despedir deles pessoalmente, mas
algo me diz que não vai ser uma boa ideia.
- De forma alguma. Só
peço que me deixe contar para eles antes. Depois você pode ir visita-los,
claro. Tenho certeza que isso não mudará o afeto que sentem por você. Sou eu
que preciso de um espaço, de um tempo para digerir tudo isso. Bom, melhor eu ir
agora.
- Ok, Leo. Também vou.
Obrigado por tudo. Do fundo do coração. E espero que um dia entenda minha
decisão.
- É, eu também espero
poder entender tudo isso.